18 setembro 2006

faça meu dia

vergonha dos leoninos, sou um bicho caseiro. gosto do mergulho nas sensações permitido pela tela imensa do cinema, mas poucos prazeres me são mais deliciosos do que apagar todas as luzes da casa e ver um bom filme com as pernas esticadas no pufe vermelho. foi assim que vi hoje o que todos já viram, “Menina de ouro” .

desde “Moça com brinco de pérola” eu não me deixava fascinar por uma narrativa. apesar de meu espírito cínico, sou do tipo que quer ouvir uma boa história, acreditar na humanidade de seus personagens, encantar-se com a verdade crua de seus limites.

Clint Eastwood é um diretor de impressionante personalidade. inscreve em “Menina de ouro” suas marcas autorais, como os diálogos econômicos e o movimento permanente de claro e escuro que diz mais sobre a atmosfera interior dos personagens do que sobre a luz das horas do dia. a história é bela e densa, mas seria fácil pontuá-la de clichês piegas sobre solidão, dor e compaixão. com Eastwood não há este risco: estão ali seres humanos escondendo-se em medos e superando medos sem construir uma fábula moral. a doçura, contraface da amargura, não é propriamente redentora.

é interessante ver como a luz, a pausa e o silêncio podem ser os grandes condutores de uma narrativa. quando vi “Os imperdoáveis”, do mesmo Eastwood, foi como se percebesse pela primeira vez que a luz — em suas ausências e nuances — poderia conter uma sensação que não pode ser plenamente descrita pelas palavras. este ambiente emotivo, presente em pintores como Caravaggio, Vermeer e Fragonard, tem sido esquecido pelo cinema contemporâneo. o que vemos, na maior parte das vezes, é a tentativa desesperada dos diretores de conduzir as emoções do espectador por meio do excesso, “guiando” explicitamente um sujeito que a indústria do cinema deve considerar estúpido. Eastwood parece saber que a vida real não se configura deste modo, e sim pela força contida de olhares, suspiros e movimentos mínimos. assim, o afeto da boxeadora se revela no registro de que o treinador gosta de torta de limão. e o desejo dele se expressa quando lê Yeats. exatamente como na vida, quando felizmente não há uma orquestra de violinos tocando alucinadamente à entrada em cena do amado, mas sabemos que ele chegou porque sentimos nossa respiração mudar.

a crueza de estar só no mundo e a delicadeza de se deixar tocar por um igual fazem deste filme uma narrativa universal. como diria Dirty Harry, Clint Eastwood “fez meu dia”.

6 comentários:

Zeca La-Rocca disse...

Deu vontade de assistir de novo!

Anônimo disse...

É a idade, Pinta. Eastwood, à revelia de outros exemplares da espécie, envelheceu e ficou bom. Sábio.

Eu também me emocionei muito com o filme, que mostra algo que vejo todo dia, toda hora mudando a vida das pessoas: a randomibilidade (putz! isso existe??) que também guia nossa existência. Hmm... achei palavra melho: o acaso. E viva Sartre... hehe...

Ana disse...

"...exatamente como na vida, quando felizmente não há uma orquestra de violinos tocando alucinadamente à entrada em cena do amado, mas sabemos que ele chegou porque sentimos nossa respiração mudar."

A-hã!

Thelma disse...

"poucos prazeres me são mais deliciosos do que apagar todas as luzes da casa e ver um bom filme com as pernas esticadas no pufe vermelho". Super idem, Márcia!!!

Telejornalismo Fabico disse...

*

eu tinha um puta preconceito com ele. até assistir aos Imperdoáveis.
ele consegue fazer dos pequenos dramas algo de transcendente.
segue a linha dos bons norte-americanos como john ford e john houston.
marca no detalhe o que nos diferencia, já que somos tão formatados grosso modo.
buenas, quanto a luz, cinema é luz, né?
e vc dá a entender que ele fez algo de original.
nesse ponto não concordo, não.
até pq há diretores que jogam a luz pro centro da ação, como um personagem, e isso é uma antiga tradição.
mas digo isso pra não concordar com tudo o que vc diz.
:p


*

Marcia disse...

Zeca, reveja. :)

Leonardo, ele tá encarquilhado. e cada vez melhor.

Ana, a sábia.

Thelma, tu também tem um pufe vermelho?

Xon xuxu, meu ego frágil não aguenta ser contrariado. dói, entendiiii?