08 setembro 2006

tolerância

a democracia é um conceito interessante, mas infelizmente são poucos os realmente preparados para lidar com o que lhe é inerente: a pluralidade de opiniões legítimas. a sabedoria popular manda não discutir certas crenças, como a religião que alguém professa e o clube de futebol para o qual torce. basicamente, porque nestes campos reina a regra do absolutismo: ou o indivíduo adere àquilo em que eu creio e isso o torna um sábio, ou o indivíduo está expulso do campo “dos iguais”, na pior da hipóteses porque o outro é burro ou mal-intencionado, na melhor, porque é ignorante.

assim funcionam as crenças, e não custa lembrar que todo o nosso processo mental se dá com base em crenças de diversos graus. em “A produção da crença”, Bourdieu fala bem sobre isso quando trata da economia dos bens simbólicos. nossa mente, que lida sempre com quadros de representações, faz escolhas a partir do que acredita ser mais verdadeiro, ou mais oportuno, ou simplesmente menos apartado de nossos valores basilares.

quando a discussão entra no terreno da política, misturam-se os dados empíricos da realidade, como a análise mais objetiva do desempenho de partidos e candidatos, e os elementos da subjetividade, como a empatia que não se pode explicar, ou as relações pessoais contaminadas por afetos que vão além do campo político, ou a rejeição categórica a tudo que, de algum modo, parece perigoso a um modo específico de ver o mundo. não é por acaso que o clichê racionalmente estúpido “comunista come criancinha” foi tão eficaz durante anos — ao resumir uma idéia de maldade intolerável. como sempre, nossa mente se move entre os clichês, os estereótipos, os quadros modulares de algo que desejamos ou tememos.

a possibilidade de alguém optar conscientemente pelo voto nulo não é apenas atacada com argumentos racionais ou pragmáticos, mas também sob os parâmetros altamente contestáveis da qualificação ou desqualificação do eleitor. se o sujeito vota nulo, torna-se um alienado que abre mão do seu “direito” — que no Brasil é um dever — de escolher e coloca este poder na mão de outras pessoas, que irão decidir por ele. sim, do ponto de vista funcional é exatamente esta a conseqüência direta de um voto nulo, porque a lei confunde, na prática, o que é um voto em branco e o que é um voto nulo: são todos inválidos. esta lei tosca, porém, não retira do voto nulo o que o diferencia do voto em branco. o voto nulo tem caráter de protesto, como forma de alguém dizer que não está de acordo com as opções que lhe foram dadas.

o argumento segundo o qual o eleitor é responsável pelo quadro de opções que lhe é oferecido a cada eleição é altamente falacioso, pois ignora o poder real de intervenção de um cidadão comum sobre os atos de um profissional da política. um cidadão comum não tem outro modo massivo de acesso aos atos de quem governa, a não ser pela mediação do jornalismo ou da propaganda. no Brasil, a imprensa em geral não fiscaliza de fato o poder, pois seus empresários estão habitualmente comprometidos ideologicamente, em função de interesses econômicos particulares. quem já cobriu política sabe exatamente do que estou falando, embora a internet esteja estabelecendo uma nova possibilidade de construção do conhecimento, cujos resultados sobre a ampliação da democracia devem ser observados em algum tempo. sobre a propaganda, nem é preciso falar, visto seu comprometimento de origem.

assim, ao cidadão comum não pode ser atribuída a responsabilidade pela configuração das opções eleitorais. se ele só pode se expressar concretamente a cada quatro anos, escolhendo quem quer ver no poder, qual é o argumento para deslegitimar o voto nulo como forma de expressão? se um partido afastou-se de tal modo daquilo que o eleitor considerava como um valor basilar, e ainda assim o sujeito é obrigado a votar, com base em que argumento alguém lhe diz que ele “não pode” anular seu voto, sob pena de talvez estar contribuindo para a eleição do pior candidato? sim, ele pode. ou, nestas condições, pode optar pelo “voto útil” — expressão que ironicamente não vejo ser utilizada por quem prega o voto no “menos ruim”. nestas eleições, atacam o voto nulo tanto aqueles que querem eleger Lula quanto aqueles que não querem, pois ambos o percebem como “um voto a menos”. os dois lados estão comprometidos com seus próprios interesses, recusando-se a ver a política como um campo complexo e mais amplo.

a questão crucial, porém, é conceitual: é a intolerância com o que é diferente. se no leque de opções existe alguma com a qual não concordo, meu instinto diz para desqualificar o sujeito que opta por ela. não importa se é seu direito, não importa nem mesmo que ele seja tão inteligente, bem informado ou consciente quanto eu, vale o jogo do ataque moral, no qual sobram os maus adjetivos e falta capacidade de entender o mecanismo da democracia. os espíritos totalitários não suportam a diferença. felizmente, contra estes espíritos existem outros, que fazem suas opções conscientemente, porque afinal é seu direito. e ponto.

7 comentários:

Anônimo disse...

Márcia,

Este foi o seu melhor artigo, obrigado!

O custo da democracia chama-se tempo. Vejo muita gente se referindo ao Brasil e suas incongruências, seus disparates sócio-econômicos e, principalmente, sobre seu atraso social baseado em má distribuição de estruturas de auto-sustenção econômica e interdependência entre zonas comerciais. O que eu nunca vejo é gente discutindo o atraso da maturidade do povo brasileiro como um todo. E atente-se a que me refiro a uma maturidade não integralmente dependente de educação! A democracia, para ser menos onerosa, necessita de um povo mais consciente. Neste ponto, me entristece ver como tão poucos blogs conseguem escapar da mesmice egocentrista para se tornar agentes conscienciosos de informação. Afinal de contas, ainda não fizeram nada melhor que a Internet para dar poder de voz ao indivíduo.

Sem querer cair num "catch 22" e retornar à questão de infra-estrutura social/econômica/educacional/tecnológica e culpar a falta de capilaridade do acesso à grande rede, acho que faltam wikis politizados no Brasil, "ponto.org's" moderados por indivíduos de cabeça fresca e muita energia. Felizmente, tem seu blog aqui que se me dessem uma "varinha de condão", faria ser lido por um montão de gente...

Telejornalismo Fabico disse...

*

como faríamos cada cidadão ter voz numa votação?
se o voto branco e nulo são candidatos, espera-se que eles assumam uma cadeira e nos representem.

se concordo ou não com vc, pouco importa.importa é que me interesso em ouvir o que vc diz, porque é na diferença que me consturo, é fora de mim que descubro quem eu realmente sou.

e ouvir alguém com uma capacidade de argumentação e lucidez dessas, é coisa pra poucos.
mesmo discordando - apesar de quase sempre concordar.
:p


*

Anônimo disse...

pois é, a falta de candidatos é a realidade destas eleições. o presidente do TSE falou que a melhor forma de protestar nas eleições é votar contra quem você não quer que se eleja. hahahhahahahahahaha

ei ei ei eymael...o democrata cristão!

deusolivre, que eleição difícil!

Graziana Fraga dos Santos disse...

é por isso que existe a democracia, cadaum deve votar em quem quiser ou anular/votar branco.
mas sempre exixtirá quem vai querer nos persuadir, tentar mostrar que sua própria opinião é melhor que a nossa ... é a política :)

concordo que esta eleição não está fácil. tanto pra presidente, quanto pra governo ...

temos uma experiência curta de eleições e praticamente todas traumáticas, a começar por Collor...
é tanta história de corrupção, é tanta pizza, que parece que não há alternativa.

Marcia disse...

Leonardo, conheço uma bruxa boa que vende varinha de condão. :P

Xonzinho do meu heart, discordar de alguém com tanta inteligência é uma honra. nada como um bom embate.

Jousi, não fica te fazendo. quero saber como foi a InterCão.

Grazi, eu adoro ser convencida de que estou errada. o que eu não tolero mesmo é quando algo sai do terreno das idéias e vai parar na desqualificação do interlocutor. eu nem sei se vou votar nulo, ainda estou pensando. mas que é prerrogativa do indivíduo fazer esta opção sem ter que explicar nada a ninguém, é. como vc mesma diz, isto é política, embora alguns queiram classificar como apolítico. :)

Anônimo disse...

Essa semana conto ao vivo e a cores, que debate bom é no olho no olho.

;P

Anônimo disse...

Márcia, se a bruxa fosse boa mesmo, dava! ;-)