20 setembro 2006

um bar

caminhando de madrugada, sou atirada sem aviso em um precipício do qual só se pode sair escalando fortemente. dentro de um bar envidraçado, pessoas que não conheço ocupam um lugar que conheci. a face racional sublima a memória, resolve as indagações, aceita o destino. mas o contraponto irracional é violento, confuso e não quer compreender ou aceitar.

fico aqui pensando em como vivemos, no presente, sem ter noção de que tudo pode acabar em um segundo. apenas acabar e mudar a vida para sempre. o que estava ali não está mais, a não ser do modo etéreo como costumam ser as lembranças. algo nos é arrancado bruscamente e pouco importa (para quem?) se deixa um vazio intolerável.

por que não temos consciência, a cada instante, de que aquela pode ser a última vez? de que é preciso reter, a todo custo, a imagem e as palavras, pois talvez seja tudo que venhamos a ter nos anos seguintes? sim, eu sei que seria impossível viver de modo tão intenso. e seria mesmo um insolúvel paradoxo, pois o amor se constrói de forma lenta e líquida, em atos tão pequenos que não podem, no momento em que acontecem, ser percebidos com esta força.

no entanto, depois que duas vidas se enlaçam deste jeito, inscreve-se em nosso dna uma espécie de cegueira à finitude. até que o destino nos faz ver que o que nos constitui é a impermanência. e assim, um bar deixa de ser um bar para ser um lugar onde reside uma parte do que se foi. assim como as fotografias, os bilhetes rascunhados com palavras banais e a memória afetiva que insiste em se atirar, a despeito do tempo, em um abismo de onde só se sai escalando fortemente e com as mãos machucadas.

11 comentários:

Anônimo disse...

É verdade. É tão verdade que estamos no caminho da confirmação *matemática* de que "o destino nos faz ver que o que nos constitui é a impermanência"...

Devaneios em Série disse...

costumo nomear meu coração de vaso, um imenso vaso que aos poucos é completado por maravilhosas gérberas vermelhas e vibrantes. Entristeço quando uma-a-uma murcham, mas a certeza de que existem imensos jardins mundo afora me conforta...

adorei o texto!

Anônimo disse...

Acho que complicaríamos bem menos a nossa vida se tivéssemos noção da impermanência.

Cada dia estou mais segura de que devo viver o meu "hoje" da melhor forma possível.E isso é tão bom...

Excelente o teu texto!!!Muito massa!!

Graziana Fraga dos Santos disse...

tenho pensando muito sobre isso.
até escrevi duas vezes lá no blog sobre a impermanência.
se não fosse difícil, todos nós saberíamos conviver com esta questão, não é mesmo.
nossa vida é isso, estamos aqui hoje, amanhã, não sabemos se estaremos ou não.
belo texto, como sempre :)

Telejornalismo Fabico disse...

*

toda ferida cura.
a cicatriz fica, mas só como lembrança de algo marcante.
e que talvez a gente não queira realmente esquecer.


*

katine walmrath disse...

Adorei, Marcia.
Foi inevitável pensar no meu pai. É mais ou menos o caminho inverso do que tu descreve, porque, diante da vaga idéia de que um dia ele fosse morrer, eu sempre tive a sensação de que tinha que viver com muita intensidade cada instante. E fiz isso.
Eu vou com a Cida: aposto no presente.

katine walmrath disse...

Ah! Enfim tô conseguindo chacoalhar a naftalina lá no blog... ;)

Rosamaria disse...

tudo é impermanente nesta vida, pinta, como o tempo.

"que seja infinito enquanto dure", disse Vinícius.

tô com a Cida, temos que viver o "hoje" da melhor maneira possível.

piu, piu.

Ana disse...

...

(Suspiro!)

É tudo tão assim que chega a doer...

Anônimo disse...

Nossa, que texto machucado!
Beijos

Anônimo disse...

Pinta que eu adoro.