04 outubro 2006

a arte de ser mestre

fazer pesquisa exige paciência de monge, curiosidade de arqueólogo, generosidade de criança, persistência de alpinista. exige precisão de anestesista, coragem de bombeiro, perfeccionismo de costureira, desapego de andarilho. é preciso saber garimpar preciosidades e ter a dignidade de abrir mão daquilo que apenas parecia uma boa idéia. é preciso abrir a mente ao mundo e rever conceitos arraigados que já não servem mais. é preciso ousar e criar.

quando alguém decide que quer ser mestre ou doutor, deve estar pronto para todas as adversidades que se interpõem no caminho de um pesquisador. para quem está de fora, esta é uma vida de difícil compreensão: como alguém pode estender uma angústia por meses ou anos, apenas para resultar em um texto final que poucos vão ler? como alguém pode gostar de estudar autores que depois vai descartar, testar hipóteses que não se comprovam — e, insanidade, como alguém pode desejar ter um problema para resolver?

neste processo, existe uma dificuldade subjetiva, que se coloca na relação entre orientador e orientando. é uma relação de poder e de hierarquia que nem todos resolvem bem. alguns orientandos vêem o orientador como um guru a ser idolatrado ou imitado, outros vêem o orientador como um inimigo. os primeiros têm medo, querem ser levados pela mão e de certo modo esperam do orientador o aval para pensar. os segundos estão tão certos de não serem compreendidos, que são incapazes de ouvir. há, de outro lado, orientadores que não confiam na potencialidade criativa de seus orientandos, interrompendo qualquer vôo que saia da rota planejada que conhecem. há os orientadores que adotam a atitude paternalista de preservar seus orientandos do sofrimento, conduzindo-os como crianças incapazes. e há os orientadores que não querem debater, porque é sempre trabalhoso rever idéias. felizmente, nem todos são assim.

em minha trajetória, tenho buscado escolher aqueles que se mostram fortes e independentes. é uma opção que deriva de minha personalidade: gosto de ser contrariada, desde que o outro fundamente seus pontos de vista. gosto de dividir a liderança e odeio a obrigação de ter respostas para tudo. gosto de aprender e espero que meus orientandos tragam perspectivas que desconheço. se vou dar a eles tanto de meu tempo, quero retorno em novas idéias que possam alargar minha mente. quero que se comprometam com o que pensam, quero que sejam capazes de enfrentar um debate sozinhos, quero que se tornem, eles mesmos, orientadores.

o exercício da autonomia ainda é o mais caro aprendizado de um mestrado ou doutorado. tenho a convicção de que um orientando só exerce sua autonomia quando confia na competência do orientador, quando se dá conta de que pode andar sozinho porque o outro está atento e não permitirá um equívoco que ponha tudo a perder. é como uma criança que está aprendendo a andar e, embora não queira ser tolhida em sua aventura, de vez em quando olha o adulto para ter certeza de que ele está ali. a orientação é uma relação paradoxal de proteção e incentivo à audácia. compreender este mecanismo e encontrar o ponto de equilíbrio é um desafio que só se vence com o tempo, a experiência e uma dose considerável de autocrítica.

quando tudo isso resulta em um texto do qual nos orgulhamos, um trabalho que não hesitamos em assinar e indicar, então sabemos que ajudamos a formar um monge paciente, um alpinista persistente, um andarilho pronto a ver o mundo. sabemos que, sim, Fernando Pessoa tinha razão: tudo vale a pena quando a alma não é pequena.

13 comentários:

Anônimo disse...

Márcia, a aventura do aprendizado, seja em que nível for, é uma dádiva que pode se tornar ainda mais rica se junto a espírito inquisidor houver um mestre generoso.

Gostaria muitíssimo de escutar sua opinião, talvez em um novo post, acerca dos temas escolhidos para teses mundo afora, especialmente nos casos de Doutorados custeados com dinheiro público ou bolsas privadas. Muitos referem-se aos Doutores como P H D's esquecendo-se que na verdade são Ph.D.'s, Philosophy Doctors! Este título, ao menos em tese, deveria trazer uma responsabilidade social universal já que o aspecto filosofal precede ao próprio conhecimento (doutorado). No entanto, esta responsabilidade perde-se muitas vezes na contemporânea compartimentalização da vida.

Qualquer tema é justo desde que aprovado por uma banca examinadora? Deveria haver critérios amparando todas as bancas ou estes cerceariam a expansão do conhecimento criativo e investigativo? Como se dosa o meio-termo?

Mais uma vez, obrigado pelo excelente artigo!

Thelma disse...

Pinta, tu és o meu orgulho!!! Tu colocaste neste texto o que realmente acontece nas relaçoes entre orientador-orientando, durante os caminhos da investigaçao.
Existem várias formas de sintonia entre estes dois coletivos. O ideal é que o orientando entenda e sinta o apoio e o incentivo à autonomia e à reflexao crítica/criativa que vêm do orientador. Também é ideal que o orientando nao fique na dependência histórico-cultural do orientador, voando segundo suas próprias idéias, mas sob o olhar atento do orientador.
Se o orientador conseguir somar sua forma de pensar/ser à forma de pensar/ser do orientando, genial! O conhecimento se amplia para ambos. Mais tarde, plasmar a ampliaçao do conhecimento em um texto, é complicado, difícil, sofrido,angustiante e, ao mesmo tempo, hipnótico-maravilhoso. Uma tese hipnotiza/absorve completamente os investigadores. Sentir que a construçao do texto vai tomando uma forma coesa e coerente é uma sensaçao indescritível.
Infelizmente, sabemos de muitos casos onde as relaçoes entre orientando e orientador se truncam e, conseqüentemente, as investigaçoes também.
Piuzinha, quando eu crescer, quero fazer um doutorado como tua orientanda, tá? Tu me aceitas?
Adorei o texto! Parabéns! Bjs.

Rosamaria disse...

maravilha, pinta!!!!!!

sorte do xôn ser teu orientando!

piu, piu.

raquel disse...

Adorei o texto. :)

Anônimo disse...

que beleza! Tomara consigamos, tu, eu e quem mais merecer, ser orientadores assim - e ter orietandos à altura!

Luiz Felipe Botelho disse...

Belo texto, sim!
Gostei de me ver e de ver minha orientadora em suas palavras. Acho que eu e ela temos sido uma alternância, mistura bem temperada de tudo o que você falou, já que vivemos um pouco de tudo isso. Ainda acho cedo para fazer uma leitura geral de nossas 'atuações' nesse processo, mas duas coisas vejo como essenciais: clareza e respeito. Cada pessoa é um mundo e a gente costuma julgar apressadamente o que vê. Sem diálogo franco, aberto e tranquilo (ou disponibilidade para ele), isso pode virar algo como um... caos. :)
Bjs

Marcia disse...

Leonardo, tema polêmico. :)
é uma equação complexa, porque cada área do conhecimento tem critérios que não podem ser universalizados. eu (por causa de um temperamento libertário) em princípio sou contra qualquer tipo de cerceamento, porque isso exigiria que alguém (mesmo um comitê de especialistas) tivesse o poder de dizer que A é relevante e B não é. mas como podemos saber?
na Comunicação, poderíamos concluir que as pesquisas mais tecnológicas fossem mais importantes que as políticas, por exemplo, e isso seria um equívoco. prefiro deixar a cargo das áreas, dos programas e das bancas.
concordo com vc que dinheiro público deve fomentar pesquisas de interesse social. tenho buscado orientar pesquisas que contribuam para compreender o jornalismo deste ponto de vista.
assunto complicado... :)

Thelma, eu só te oriento se for aí. com um puxadinho em Barcelona, piu piu piu.

Rosa, Xon é o orientando que pedi aos deuses. de quebra, ganhei o melhor amigo que alguém pode desejar. inteligente, talentoso, generoso, rigoroso. e bem humorado.

Raquel, vc é excelente orientadora. tô sabendo e acompanhando. :)

Suely, minha coordenadooouuu-ra!!! se todos fossem iguais a vc...

Marcia disse...

Felipe, bom te ver aqui. :)

Gerson Luiz Martins disse...

Muito bom texto! Fiz uma indicação em meu Blog.
Beijos!

Marcia disse...

Gerson, meu presidente. quanta honra. :)

Clarice, :P
nem precisa pedir. e volte sempre, a casa é sua. :)

Adriana Amaral disse...

marcia, adorei o texto!!!! mas talvez o moço la de cima nao me desse minhas bolsas, embora eu considere a minha pesquisa social..rs bjos

Telejornalismo Fabico disse...

*


o problema das crianças que aprendem a andar é vc descobrir que ela é O Bebê de Rosemary.

- belo texto, sôra, na medida certa.

*

Mariana Mesquita disse...

Tava precisando ler isso, bem no dia em que soube que consegui nova orientadora... Beijão.