08 dezembro 2006

viking

dizem que é difícil definir o amor. talvez seja. para mim, no entanto, o exercício mais árduo ainda é definir a amizade.

todos conhecemos muita gente. há quem crie categorias, enquadrando as pessoas aqui ou ali. há quem faça rankings, pontue com estrelinhas, elabore listas. eu não sou assim. não me preocupo em distinguir, a cada momento da vida, o nível de merecimento de cada um a um gesto meu. estes gestos apenas acontecem, espontaneamente, guiados por um parâmetro subjetivo que não se explica. mas sei que existe uma diferença substancial entre aquilo que acrescenta e aquilo que faz falta.

tenho amigos com quem raramente falo. são pessoas especiais que já foram essenciais na minha vida, e mantenho a ilusão de que posso contar com elas quando precisar. como se os amigos fossem uma espécie de reserva técnica para as necessidades do espírito e habitassem um lugar, preso no tempo, ao qual posso recorrer quando for necessário acionar em mim, ainda hoje, uma pessoa que já fui.

assim como eu, porém, estes amigos que julgo suspensos no tempo vivem suas vidas e se transformam em outras pessoas à medida que os anos passam. os sofrimentos, prazeres, descobertas e experiências que neles se acumulam, enquanto estão longe de mim e eu nada sei deles, provocam um estranhamento que só encontra algum sossego ao retomar as memórias do que fomos um dia – e que talvez ainda sejamos, ou quiséssemos ser, um para o outro. com freqüência não nos reconhecemos. e eu penso: “ele não era assim”. e ele pensa: “ela não era assim”. para estes amigos, resta a saudade episódica, a alegria genuína de rever e o passo adiante que grita, categórico: nos gostamos, nos lembramos, nos retomamos, mas não nos fazemos falta. talvez a vida fosse melhor se nos víssemos mais, e talvez isso apenas revelasse que já não somos quem julgamos ser. com estes amigos estabeleço uma relação estável, imaginada, ambientada em um passado que pode nunca reexistir.

outros são conhecidos. pontualmente aliados, eventualmente solidários, em um momento ou outro compartilhando projetos, sentimentos, valores e percepções sobre a vida. de repente, o olhar afetuoso de um amigo ocasional se derrama sobre mim de modo totalmente imprevisto, e eu me sinto em contato verdadeiro com ele. estes momentos me parecem tão valiosos quanto as lembranças dos velhos melhores amigos. são uma espécie de promessa de que no futuro, quem sabe, se possa amarrar ali alguns nós importantes. um pouco nos respeitamos, um pouco nos admiramos, um pouco nos desconhecemos, mas também não nos fazemos falta. com estes conhecidos ou amigos ocasionais, estabeleço uma relação contida, fragmentada, temerosa e projetada para um futuro que pode nunca ocorrer.

isso tudo acrescenta e é bom. porém, ainda que aparentemente eu me baste, só me revelo em minha complexidade diante de um outro. quem é este outro, a quem dedico minha bárbara intimidade? com quem posso ser viking, ateu, cínico e tosco? com quem posso ser doce, infantil, frágil e tolo? quanto mais a vida passa, mais me convenço de que este é o verdadeiro amigo. aquele que te aceita nos piores dias, pacientemente, e cuida de você como quem cuida de um filhote ferido, pois ele precisa de novo de seu humor e de sua energia.

o melhor amigo divide com você, com a mesma disposição, as belezas tolas da vida e as profundezas de seu espírito atormentado. pode tagarelar em um dia e silenciar em outro. ele pode. o melhor amigo é aquele que você gostaria que provasse aquele sorvete, ouvisse aquela música, lesse aquele livro. não por você, mas por ele. ou por ele, com você. é a quem você quer acrescentar o que pensa ter de melhor. é aquele para quem você diz o que não precisa ser dito, apenas para ver nele o sorriso irônico de “é mesmo?”.

dizem que os melhores amigos têm um olhar cúmplice. no entanto, para o verdadeiro melhor amigo nem mesmo este olhar é mais necessário: você simplesmente “sabe” que ele compactua de seus sentimentos e entende o que você entende. quando você percebe que a cumplicidade se estabelece no não-olhar, em um jeito de respirar, caminhar ou enfiar as mãos no bolso que você reconhece como uma marcação, acaba-se o desassossego de saber-se só. para você não importa se ele está de vermelho, de preto ou nu. importa é que ele esteja. não importa se ele cozinha, não cozinha ou silencia. importa é que venha. não importa se ele sabe ou não sabe. importa é que seja. se ele não está, não vem ou não é, isto faz falta. você quer que ele voe, se arrisque, seja alguém sempre melhor. mas também quer dele o oculto e obscuro, pois mesmo o que parece pior se conecta com a estranheza que você sente em si mesmo.

ninguém nasce melhor amigo. ao contrário dos adolescentes, que se amam e se abandonam com a mesma intensidade sincera, a vivência nos mostra que o melhor amigo é aquele que resiste às diferenças que pontuam as personalidades. se nos atraímos pelo que nos é oposto, a verdade é que nos construímos verdadeiramente com quem nos parece igual e, portanto, complementar. um exercício de imaginação me faz pensar se eu encontraria meu melhor amigo em outra cidade, por outras vias, de um outro jeito. meu senso fatalista e irracional sempre diz que sim. o destino, este temperamental, sempre faz convergir o que importa.

com meu melhor amigo, aprendo todos os dias a não sentir culpa por ser viking, insana, tola e despudorada. acredito honestamente que temos uma essência andrógina – e que tudo de que precisamos se encontra em nós mesmos. meu melhor amigo, porém, aciona em mim aquilo que falta expressar. o que parece faltar, e que então não falta mais.

16 comentários:

Telejornalismo Fabico disse...

*


olhos em água.



*

Aleksandra Pereira disse...

Lindo, minha querida!

É muito bom descobrir que temos bons amigos, amigos verdadeiros. Já tomei tanto na cabeça por confiar em quem não devia que às vezes fico com pé atrás, mas quando me abro para possibilidades, tenho a chance de encontrar pessoas excelentes.


Beijo grande, tenha um bom dia!

Ana disse...

Uma amizade assim, quando acontece, apesar de difícil de explicar, é tão fácil de viver...

Mas tu explica bem demais!!!!!!!

:)

Graziana Fraga dos Santos disse...

belo texto, maravilhoso mesmo.
(que presente pro teu amigo!)
você conseguiu falar sobre amizade de um jeito lindo e sincero, consegui ver cada amigo que tenho nas tuas palavras.
quem tem amigo, tem tudo.
costumo dizer que os amigos são os irmãos que escolhemos...
é divino ter uma amizade tão especial assim ;)

Maroto disse...

Sei onde vc encontra o talento para escrever esses longos textos maravilhosos. Suspeito de onde vem a inspiração. Pra mim o maior mistério é onde vc encontra o tempo.

Paula Puhl disse...

Esse texto está "TUDO", como dizem os alunos....amigo e aquele gosta da gente assim, sem mais e sem menos. Quando precisamos pesar antes de falar, também devemos pensar se ele ainda é um amigo.

Anônimo disse...

Neném,

Quando a gente encontra um amigo assim a fábula vira lenda real e é com ele que um dia completamos nossas bodas de prata, ouro, diamante.

Acho que você não encontraria este amigo em outra cidade ou por outras vias porque acho que já encontrou! E acho mais. Acho que se este amigo vir em você a mesma amiga, saberá que acabou de ler uma linda declaração de amor.

Beijo,

Luiz Felipe Botelho disse...

Me encanta como consegues "varrer" um tema que fala de emoção e fazê-lo com tanta pertinência. Tá falado, Márcia. Tocou na alma. Emocionou. piu piu pra ti.

Rosamaria disse...

pinta,

estava curiosa pra ler teu texto, depois dos comentários do Sean e da Ana lá no orkut.
fiquei emocionada!
eu não tenho um amigo assim, mas sinto que o teu é o bunitinhu. não foi em vão que os olhos dele ficaram em água.além do texto espetacular a tua amizade tb é.

muitos e muitos pius.

Anônimo disse...

Xon, mandei entregar aí uma caixinha de kleenex.

Aleksandra, são grandes as decepções. mas eu nunca acho que os não-amigos mereçam um post. para estes, o ostracismo. ;)

BacAna, de vez em quando a vida nos dá um presente.

Grazi, sabe que acho que são mais que irmãos?

Suely, eu conheço um cara que vende tempo no câmbio negro. quer o telefone dele?

Paula, que bom te ver aqui. piu piu.

Leo, sou adepta do Caetano: acho que a amizade é superior ao amor. ;)

Marcia disse...

como assim, "anônimo"? eu, hein?

Marcia disse...

Felipe, piu piu piu procê também.

Rosinha, muitos pius doces pra vc.

Anônimo disse...

Ahh Neném, qualé?!? Prá cima de moi? Todo mundo sabe "que a solidão é pretensão de quem fica escondido fazendo fita!" ;)

Anônimo disse...

Como sempre, maravilhoso texto que vai nos envolvendo e tal como marmore esculpido, deixando la a tal da alminha exposta.como aconteceu comigo esta semana, em algum momento a gente tem de dizer um nao para uma grande amiga. aquelas do tempo construido onde sim e nao fazem parte de uma historia , feita de risos,bolo-de-noiva,fraldas,cachorro-quente,choro. e doi.

Anônimo disse...

que bonito. gostei bastante.

Anônimo disse...

que bonito. gostei bastante.