21 junho 2008

o bispo do Morro da Providência

quem tem verve, quem tem estilo, quem tem cérebro tem o que importa nesta vida. Sylvia Moretzsohn tem. e mostra neste texto do Observatório da Imprensa.

update: no espaço dos comentários, você encontra os artigos da Maria Rita Kehl e do Janio de Freitas que saíram na Folha de São Paulo. vale a leitura.

5 comentários:

Anônimo disse...

Marcia, quem me dera estar à altura do seu elogio.
Mas escrevi movida por uma profunda indignação com esse episódio, que é uma das maiores barbaridades que a gente pode imaginar. Ou nem pode imaginar - basta ler "O impensável", excelente artigo da Maria Rita Kehl, na Folha de hoje.
Obrigada pela divulgação!
Beijo!

Marcia disse...

Sylvia,

vc é Bodelér. :)

vou colocar aqui o artigo da Maria Rita Kehl.

Marcia disse...

O impensável

MARIA RITA KEHL


O INIMAGINÁVEL acontece. Supera nossa capacidade de prever o pior. Conduz-nos até a borda do real e nos abandona ali, pasmos, incapazes de representar mentalmente o atroz. O pior pesadelo do escritor Primo Levi, em Auschwitz, era voltar para casa e não encontrar quem acreditasse no horror do que ele tinha a contar.

Acreditar no horror exige imaginá-lo de perto e arriscar alguma identificação com as vítimas, mesmo quando distantes de nós. Penso no assassinato dos cidadãos cariocas David Florêncio da Silva, Wellington Gonzaga Costa e Marcos Paulo da Silva por 11 membros do Exército encarregados de proteger os moradores do morro da Providência. Assassinados por militares, sim, pois não há diferença entre executar os rapazes e entregá-los à sanha dos traficantes do morro rival. A notícia é tão atroz que o leitor talvez tenha se inclinado a deixar o jornal e pensar em outra coisa.

Não por insensibilidade ou indiferença, quero crer, mas pela distância social que nos separa deles, abandonamos mentalmente os meninos mortos à dor de seus parentes. Abandonamos os familiares que denunciaram o crime às possíveis represálias de outros "defensores da honra da instituição". Desistimos de nossa indignação sob o efeito moral das bombas que acolheram o protesto dos moradores do Providência.

Nós, público-alvo do noticiário de jornais e TV, que tanto nos envolvemos com os assassinatos dos "nossos", viramos a página diante da morte sob tortura de mais três rapazes negros, moradores dos morros do Rio de Janeiro. É claro que esperamos que a justiça seja feita. Mas guardamos distância de um caso que jamais aconteceria com um de nós, com nossos filhos, com os filhos dos nossos amigos.

O absurdo é uma das máscaras do mal: tentemos enfrentá-lo. Façamos o exercício de imaginar o absurdo de um crime que parece ter acontecido em outro universo. Como assim, demorar mais do que cinco minutos para esclarecer a confusão entre um celular e uma arma? E por que a prisão por desacato à autoridade? Os rapazes reclamaram, protestaram, exigiram respeito -ou o quê? Não pode ter sido grave, já que o superior do tenente Ghidetti liberou os acusados.

Mas o caso ainda não estava encerrado? O tenente, que não se vexa quando o Exército tem que negociar a "paz" no morro com os traficantes, se sentiu humilhado por ter sido desautorizado diante de três negros, mais pés-de-chinelo que ele? Como assim, obrigá-los a voltar para o camburão -até o morro da Mineira? Entregues nas mãos dos bandidos da ADA em plena luz do dia, como um "presentinho" para eles se divertirem? Era para ser "só uma surra"? Como assim?

Imaginaram o desamparo, o desespero, o terror? Não consigo ir adiante e imaginar a longa cena de tortura que conduziu à morte dos rapazes. Mas imagino a mãe que viu seu filho ensangüentado na delegacia e não teve mais notícias entre sábado e segunda-feira. E que depois reconheceu o corpo desfigurado, encontrado no lixão de Gramacho. Imagino a cena que ela nunca mais conseguirá deixar de imaginar: as últimas horas de vida de seu menino, o desamparo, o pânico, a dor. "Onde o filho chora e a mãe não escuta" era como chamávamos as dependências do Doi-Codi onde tantos morreram nas mãos de torturadores.

Ainda falta imaginar a promiscuidade entre o tenente, seus subordinados e os assassinos do morro da Mineira: o desacato à autoridade é crime sujeito a pena de morte e a tortura de inocentes é objeto de cumplicidade entre traficantes e militares? Claro, os traficantes serão mortos logo pelo trabalho sujo do Bope. Se outros cidadãos morrerem por acidente, azar; são as vicissitudes da vida na favela.

Quando membros corruptos da PM carioca mataram a esmo 30 cidadãos em Queimados, houve um pequeno protesto em Nova Iguaçu. Cem pessoas nas ruas, familiares dos mortos, nada mais. Nenhum grupo pela paz foi até lá. Nenhuma Viva Rio reuniu gente de branco a marchar em Ipanema. Ninguém gritou "basta!" na zona sul. Não é a mesma cidade, o mesmo país. Não nos identificamos com os absurdos que acontecem com eles.

Não haverá um freio espontâneo para a escalada da truculência da Polícia e do tráfico, nem para o franco conluio entre ambos (e, agora, membros do Exército) que vitima, sobretudo, cidadãos inocentes. Não haverá solução enquanto a outra parte da sociedade, a chamada zona sul -do Rio, de São Paulo, de Brasília e do resto do país-, não se posicionar radicalmente contra essa espécie de política de extermínio não oficial, mas consentida, a que assistimos incrédulos, dos negros pobres do Rio.


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MARIA RITA KEHL é psicanalista e ensaísta, autora do livro "Sobre Ética e Psicanálise" (Cia. das Letras, 2002).

Folha de São Paulo, 22.junho.2008

Marcia disse...

JANIO DE FREITAS

O bom sinal e outro melhor


A INICIATIVA DO ministro Nelson Jobim de dar como também do governo a versão dos militares criminosos, para o assassinato com tortura dos três jovens da Providência, foi muito mal recebida na Presidência da República. Bom sinal. Inaugura na Presidência a tão atrasada recusa ao comprometimento com explicações à velha maneira, montadas por conveniências de militares.

E melhor sinal ainda ao permitir o imediato reconhecimento, por uma comissão especial chefiada pelo determinado ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, de que a versão do Exército, de Jobim e dos militares envolvidos é negada por depoimentos e evidências já recolhidos pela comissão na Providência. Nas palavras de Vanucchi: "Os relatos dos moradores contradizem a versão do Exército", e narram, inclusive, "maus-tratos anteriores contra os moradores".

O questionamento da comissão à versão dos criminosos, encampada por inteiro e a priori também por imprensa, TV e rádio, não perderá valor se não chegar às respostas insuspeitas. Seu primeiro passo já é um ato de hombridade dos autores e de respeito às leis e à democracia. Mas a probabilidade de que a comissão especial chegue a fatos reais e às explicações necessárias estreita-se, ou tende a isso, caso dependa de colaboração militar e da polícia.

Daí que, nesse caso, um aspecto paralelo merecedor de exame é o motivo que levou a polícia ao extremo possível de cautela, para não se comprometer com a versão dos crimes além do mínimo inevitável. As armas dos 11 militares envolvidos, por exemplo, não foram recolhidas para a confrontação pericial com as perfurações por tiros (a monstruosidade de 46 nos três rapazes). Além de tecnicamente obrigatória, a confrontação, no caso, era indispensável. Tudo começou por um incidente dos militares com os rapazes e um destes foi visto por sua mãe, "caído ensangüentado", em quartel do Exército.

A polícia também não quis ir ao que seria, na versão imposta, o local da execução no morro da Mineira, como faz, por outra obrigação técnica, mesmo em circunstâncias de alto risco (o caso do jornalista Tim Lopes é exemplar). Não se interessou nem por tomar depoimentos imediatos, antes de esperáveis ameaças e ofertas silenciadoras, de famílias das vítimas e de circunstantes com algo a dizer ou a negar na Mineira e na Providência. Em um e outro morro não faltaria, àquela altura, quem tivesse contribuições a dar, nos dois sentidos.

Em vez da colaboração oportuna, famílias ameaçadas agora pedem abrigo no programa de proteção a testemunhas. Ameaçadas por quem? As famílias das vítimas e outros moradores da Providência, até onde se pode supor, não teriam como prejudicar bandidos da Mineira não identificados. A polícia não tem motivo imaginável para fazer ameaças, se o que mais quis, até agora, foi guardar silêncio e distância. Onde poderia estar o interesse em intimidar familiares das vítimas e outros moradores da Previdência - eis um mistério que dispensa interrogações.

As interrogações necessárias estão com a comissão especial, como as esperanças que possamos ter, ainda, de não ver torturas e assassinatos outra vez guardados nos mesmos porões das negaças e dos mutismos, sem verdade e sem justiça.

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Folha de São Paulo, 22.jun.2008

Graziana Fraga dos Santos disse...

Marcia, os três textos são excelentes, o páragrafo que segue diz tudo, tudo o que acontece aqui e em qualquer lugar.

Quando membros corruptos da PM carioca mataram a esmo 30 cidadãos em Queimados, houve um pequeno protesto em Nova Iguaçu. Cem pessoas nas ruas, familiares dos mortos, nada mais. Nenhum grupo pela paz foi até lá. Nenhuma Viva Rio reuniu gente de branco a marchar em Ipanema. Ninguém gritou "basta!" na zona sul. Não é a mesma cidade, o mesmo país. Não nos identificamos com os absurdos que acontecem com eles.



beijos
Grazi