07 julho 2009

cinquentinha

quando o Nando, meu irmão, era adolescente, ele tinha um caderno de coisinhas pessoais. ensaios. poemas. coisinhas assim. e como escrevia bem, o desgraçado. eu vivia atrás daquele caderno como um cão farejador. e ele escondia cada hora num lugar. um inferno. de vez em quando eu conseguia achar e ler rapidinho, morta de medo. morta de medo mesmo, porque um olhar do Nandinho bastava para fazer você correr léguas. hoje eu já não fujo, mas o olhar matador continua lá.

ele também tinha uma calça jeans (a gente chamava de "calça Lee") bem justa na coxa e que depois abria em cones enormes embaixo. auge dos anos 70. usava o cabelo comprido e um crucifixo. um rebelde.

uma noite ele entrou com a Brasília azul da minha mãe embaixo de um caminhão. a Brasília morreu para todo o sempre. o caminhão ficou torto. e o Nando teve um corte na testa. mas eu nunca mais parei de pensar o quanto ele faria falta.

o Nando é aquele cara que ouve e depois fala. mas, se você se alonga, ele dá uns suspirinhos. sabe aqueles suspiros? então, ele é pós-doutor em suspirinhos de tédio. se ele te faz uma pergunta, quer uma resposta objetiva. uma conversa "séria" com ele dura cinco minutos. e deu. falou uma vez, não precisa falar a segunda. prometeu, não precisa assinar e dar garantias. falou, prometeu? então tá. obviamente, o Nando virou engenheiro.

é leitor de bons romances. gosta de filmes clássicos. foi campeão de handebol. adora pegar a estrada. entende as regras do futebol americano. e entende as regras do beisebol, o que me mata de inveja. adora sua mulher e seus filhos. assa um ótimo churrasco. faz uma deliciosa caipirinha com adoçante. recebe super bem a família trapo, dando risada com as confusões e gritarias que só uma família de italianos consegue fazer. ô, italianada que fala tudo ao mesmo tempo, espicha as mãos e derruba copos na toalha. credo.

o Nando tem 90% de qualidades e 10% de defeitos. entre as qualidades, estão o caráter, a determinação, a inteligência, a perspicácia, a lealdade e a capacidade de descobrir onde se vende o melhor pastel de carne em qualquer estrada gaúcha.

hoje o Nando faz 50 anos, e olha que ele ainda tem bastante cabelo. 50 anos de um engenheiro que soube construir uma família sensacional. também soube se construir e se reconstruir, quando a vida nos deu um contragolpe. comemoramos o aniversário dele no domingo, e meu pai guardava uma surpresa: passou para ele um relógio de bolso, de ouro, funcionando perfeitamente. o mesmo relógio que meu pai havia recebido de meu avô (pai da minha mãe) ao fazer 50 anos. confesso que engasguei um pouquinho. não foi apenas bonito. foi merecido.

o que eu desejo pro Nando ele sabe. e, sinceramente, esta é a melhor parte da minha relação com ele. tá tudo ali. ele sabe, eu sei.

dois anos atrás escrevi este texto para ele. não retiro uma vírgula, continua sendo tudo verdade. porque não seguir em frente nunca foi uma opção.

5 comentários:

Clélia Riquino disse...

Pinta,

Meu irmão tb é Nando, mais velho que eu 5 anos. Caminhos tortuosos nos afastaram, há bastante tempo. Hoje, ele mora nos EUA, com família americana grande (5 filhos & 4 netos). Sinto falta dele e da convivência que deixamos de ter (ele e eu; sua família e a minha). Mas nos falamos, vez ou outra, por e-mail, e trocamos fotos. Não é, claro, a mesma coisa.

Gosto muito da sua forma de escrever. Gosto muito do que você escreve. É sempre um prazer lê-la. Tocantes os dois textos (o anterior, já havia lido, na época).

bj,
Clélia

Marcia disse...

Clélia, que bom te ver por aqui. :)

eu acho que, por mais que irmãos se afastem na vida adulta, sempre fica um laço da infância que nutre alguma coisa realmente importante, genuína.

Caco disse...

Você sempre faz a gente arrepiar (eu disse lacrimejar?) quando toca em assuntos assim.

Bjs
CACO

Demétrio de Azeredo Soster disse...

Já reparou que engenharia é uma daquelas profissões que não têm meio termo; ou seja, ou você é um engenheiro legal ou não é, e não apenas no que toca ao seu ofício. Eu, pelo menos, não conheço nenhum engenheiro mais ou menos; tipo meia boca. O Nando é um engenheiro legal, com certeza. Longa vida à sua memória, pois! Baccio.

Dalys disse...

Marcia, tu texto me conmovió muchísimo, me hizo pensar en las celebraciones familiares y en mis hermanas. Me encanta como escribes.

Un beso grande