07 fevereiro 2011

Alzheimer

minha mãe está com Alzheimer. não há, hoje, nem sombra do que ela foi um dia. não, mentira minha: as características do temperamento continuam lá. minha mãe continua teimosa e irada. e isso ela foi desde sempre. 

o que acontece com o cérebro humano é difícil de aceitar. a menos que você seja um neurocientista e perceba o problema do ponto de vista funcional, como um caso, torna-se difícil de aceitar. quando a pessoa com Alzheimer tem um nome, e especialmente quando tem o seu sobrenome, algo acontece também com você.

os papéis se invertem muito mais rápido do que você estava preparado para. e, bem, este preparo era apenas teórico. era um pensamento filosófico, daqueles que a gente tem nos momentos melancólicos, quando se pega tergiversando sobre a vida, a morte, a velhice, a decadência física e psíquica, a dependência. mas, como sempre, é violento o abismo entre a teoria e a prática.

na prática, é minha mãe quem tem Alzheimer. isso exige uma readaptação de todo mundo que convive com ela. exige um rebaixamento enorme de expectativas. exige que eu me reposicione, a todo momento, para falar com ela de outro lugar: o lugar de quem sabe que ela está doente. o lugar de quem sabe que ali, diante de mim, não está mais a mulher de mente brilhante, a mulher decidida, forte e protetora. é ela, agora, quem precisa de proteção.

acho que isso tem a ver com meu afastamento do blog nos últimos tempos. foi, pelo menos, um dos fatores. o que dizer, quando estava tão complicado compreender? mas agora, finalmente, depois de tantas sessões com meu psiquiatra tentando entender esta doença, acho que me sinto preparada (talvez?) para aceitar este novo ciclo. e aceitá-lo sem culpar ninguém, porque não há alguém a quem culpar. 

é a vida, a vida um pouco bandida e um pouco injusta, mas ainda assim é como as coisas se apresentam. não se pode simplesmente virar as costas e ir embora. a única atitude decente, diante de um caso assim, é lidar com o problema.

lidar com o problema significa fazer coisas bizarras. significa ligar a TV em desenhos animados, porque minha mãe ri deles. significa comprar cobertores de bebê, porque são pequenos e macios como ela gosta. e vê-la carregando pela casa aqueles cobertorzinhos com coelhinhos e ursinhos aplicados. significa comprar livros com fotos de cachorrinhos e gatinhos, porque ela gosta de olhar para eles. significa ouvir histórias desconexas, que misturam personagens reais e inventados, repetidas e repetidas vezes. significa comprar shampoo da Johnson, porque não ardem nos olhinhos. significa esconder coisas perigosas e supervisionar a pessoa, como se ela tivesse dois anos. 

lidar com o problema significa também adotar uma outra perspectiva sobre o tempo. o nosso tempo regular, de dias e horas, não existe para ela. não importa se hoje é segunda ou quinta. ela não sabe se está lá há duas horas ou cinco horas. o tempo dela é aquele do corpo, o que diz quando tem fome, quando tem sede, quando precisa caminhar um pouco. é outra coisa, é outra mente, é outra lógica interior. 

é um mundo muito particular, no qual as coisas se movem de outro jeito. um mundo no qual algo dura muito ou acaba em um segundo, e você não tem qualquer domínio sobre isso. a história começa, mas não termina. a história muda no meio do caminho. de repente, silêncio. e é isso, não tente retomar o que não existe mais na mente dela. está lá, mas não lhe é acessível. desista.

não posso deixar de pensar, porém, que a insanidade resolve algumas dores. não as minhas, mas as dela. quando minha mãe confunde o filho com o irmão que já morreu, imagino que dentro dela se acenda algum tipo de felicidade. afinal, ela pode abraçar meu tio de novo, nem que seja por trinta segundos. esta felicidade imaginária é uma espécie de bênção. 

o Alzheimer vira tudo do avesso. talvez seja o avesso do avesso do avesso, como dizia Caetano. talvez seja apenas drão, como dizia Gil, porque o amor é como um grão, "morre, nasce trigo; vive, morre pão".

12 comentários:

Patricia disse...

Força, desejo-te muita força.
Fica bem!

Rosamaria disse...

pinta querida, o que dizer numa hora dessas se não que já passei por isso. minha mãe, em cadeira de rodas, sempre procurava meu irmão, que tinha síndrome de Down e falecera há cinco anos. até que numa hora de lucidez ela se deu conta.e eu tinha que me dividir entre a minha casa e filhos e ela,e aí já é outra história.
força pra ti, minha amiga e para todos os que a rodeiam.
bjim

Aucilene disse...

É... não há muito a dizer. Cada qual com suas histórias, suas experiências... Apenas desejar que seja forte e serena.

Passo sempre por aqui para leiura, porém sou de pouco comentar. Hoje, talvez pelo assunto tão familiar (tive uma avó materna e tenho, hoje, uma mãe sofrendo do mesmo mal) resolvi dar "o ar da graça".

Um abraço!

katine walmrath disse...

Mesmo o sofrimento, nosso, de quem amamos muito e dos outros em geral, pode ser inspirador, por mais duro que seja.
Torço sempre por ti.

Ana disse...

A mente humana, em seus labirintos, pode ser um mistério...

Sinto raiva, indignação, tristeza, pena, culpa e mais culpa... cada vez que olho para a minha mãe. É difícil demais e não sei lidar com isso.

Marcia disse...

obrigada pelo apoio, gurias.
eu estou bem, mas palavras assim sempre caem bem. :)

Ana, lembrei muito de ti nestes tempos.
os sentimentos são estes mesmo, mas culpa... não, não sinta culpa.
a culpa é um modo de a gente pensar que poderia resolver o problema (se "quisesse", se agisse deste jeito ou de outro, se tivesse feito isto ou aquilo).
e nada disso é verdade.
não temos potência para impedir.
só podemos ter paciência, um pouco mais de paciência como pede o Lenine.

Dalys disse...

Marcita, mucha fuerza para tí y para toda tu familia.
Pasé por experiencias similares acompañando a Pitu, con su papá y a la abuela de Coralia, que era una persona muy querida para mí.
No puedo imaginar lo doloroso que puede ser cuando toca más de cerca. No es fácil, es un día cada vez.
Puedes contar conmigo siempre.
Te mando un gran abrazo.

Ederson disse...

Tem um trabalho fotográfico maravilhoso chamdo "Days with my father" em que o fotógrafo faz algumas observações cotidianas do pai dele. O livro foi lançado recentemente aqui no Barsil.

http://www.dayswithmyfather.com (as fotos e os textos continuam pra baixo da página)

Abraço!

Adriana Amaral disse...

Meu pai estava sim nos últimos dias. Durou pouco tempo pq logo ele faleceu, mas foi triste de ver a desintegração dele enquanto uma pessoa ativa, talvez seja a pior parte. Muita força pra ti e um grande beijo

Caco disse...

Fuerza!

Penkala disse...

vivi o Alzheimer na minha família 3 vezes. uma delas levou desse mundo bem antes da morte do corpo o meu avô querido que era meu segundo pai. e pra gente que sabe tudo, que vive estudando, que vive do que lembra, e que vive tendo orgulho de fazer mega sinapses sensacionais, é difícil lidar com o fato de que aquela pessoa sequer sabe que existe. mas o pior, certamente, é lidar com o fato de que a gente não sabe lidar com nossa falta de capacidade de compreender que a pessoa não saber quem é ou quem tu é ou o que é uma colher não faz ela sentir menos dor, solidão ou coisa assim. pior de tudo é lidar com a culpa. e, pelo que vi, tu tá conseguindo entender rápido que ninguém tem culpa. porque, no fim das contas, a coisa mais importante que uma pessoa assim quer da gente é um pouco de conforto. nem que por 5 segundos.
força, Pintinha. não é fácil, eu sei. mas quando a gente consegue dar conforto pra quem a gente ama, já é menos difícil. bjinho pra ti.

clarice disse...

Emocionante!!!!!
Meu pai esta desenvolvendo uma doença neurológica degenerativa.Só nao sabemos qual delas é ainda, estamos esperando o resultado do mapeamento do cerebro.
Força!
Bjos