05 fevereiro 2013

A dor que um psicanalista não entendeu


Li, no blog de um psicanalista, que as manifestações de dor nas redes sociais, em virtude do incêndio na boate Kiss, eram uma hipocrisia, pois “precisamos fingir que nos importamos”. A mim, parece que este psicanalista entende pouco de seres humanos, pouquíssimo de redes sociais e quase nada de Santa Maria.

Não perdi ninguém próximo e mesmo assim fui atirada em uma tristeza concreta, que durou dias. Uma amiga descreveu o que sentia como “um cansaço crônico”. Com voz baixa, doída, meu pai se disse “devastado”. Longe ou perto, vivemos dias de insônia e de lágrimas. Dias de impotência, fragilidade, incredulidade, silêncio. Dias de chorar pela dor do outro, imaginando-se no lugar do outro, sentindo pelo outro, sentindo com o outro. Com os pais, os irmãos, os amigos, os professores. Uma tristeza funda, que nada tinha de artificial. Aquela tristeza que mostra, cruamente, a desimportância de todas as coisas. Por que, afinal, doeu verdadeiramente em tantas pessoas?  

É porque ali, talvez alguns se lembrem, ali não era uma boate. Ali era a distribuidora da Brahma. A distribuidora do Ives Roth, que para mim era “o pai do Cabeto”. Na frente dali, não era o Carrefour. Era o colégio Hugo Taylor, a antiga Escola de Artes e Ofícios, de propriedade da cooperativa dos ferroviários.

Na esquina da Niederauer com a Floriano não havia uma agência bancária. Era a entrada do colégio Santa Maria. E na esquina da Floriano com a Presidente Vargas não havia uma farmácia. Era o bar Em Cena. A cidade vai mudando por fora, mas, de um jeito estranho e emaranhado, fica sempre a mesma dentro da gente.

A Santa Maria da Boca do Monte que eu guardo tem o cheiro do pão quentinho da padaria Holterman. Tem a marcação do sino do colégio Centenário. Tem as cores do sorvete do seu João e a textura da massa folhada da Copacabana. Esta Santa Maria se fez nas casas compridas da Vila Belga. Se fez no cine Independência, no Glória e no Glorinha. Nos bailes de carnaval do Caixeiral e do Tênis. Nas tertúlias, nas festas no Comercial e no Minuano, no Socepe e no Pinhal.

Na minha memória vivem a galeria do Comércio, a ponte do Itararé, o prêmio Felipe de Oliveira, a procissão da Medianeira. Vivem os trens no final da Rio Branco e a aventura de atravessar os trilhos na Sete de Setembro. Vivem a Feira do Livro, as tartarugas da Saldanha Marinho, as histórias da Garganta do Diabo.  

Santa Maria, a cidade de mil conexões. Cresce, muda e de algum modo permanece igual. A cidade por onde passam militares de todos os cantos e estudantes de lugares impensáveis. A cidade que acolhe quem busca ser mais. Pessoas que chegam e partem, levando a lembrança do vento norte e da beleza impressionante das montanhas.

Mas a melhor memória não é que retém nomes e espaços. A memória que aciona a empatia é aquela que reteve emoções fundas. Primeiro os colégios e os colegas. Depois a universidade e um mundo de ações coletivas que se desenham a partir da cidade. A Santa Maria que eu guardo na memória é a do movimento estudantil, dos secundaristas e depois do DCE. A cidade dos longos debates, das noites pichando poemas que desafiavam a brutalidade. Das festas, das idéias, das ruas cruzadas em bando nas madrugadas frias. Nosso caráter era moldado no coletivo. 

Tudo isso muda, geração após geração. Alteram-se os espaços, as causas, os endereços. Os lugares se empilham na nossa memória, uns sobre os outros, sendo uma coisa, depois outra, e outra, e assim se fazem as histórias das cidades. Mas meio que muda sem mudar. A conexão afetiva está lá, e é ela que nos faz olhar para esta tragédia de um jeito enredado. Alguém disse, no Facebook, que a dor acontecia “na casa de cada um de nós”. É evidente que existem gradações, diferenças, distinções segundo a proximidade de cada um. Mas sim, é exatamente isso, acontece verdadeiramente dentro de cada um de nós. Expressar este sentimento nas redes sociais é o movimento óbvio, humano, de compartilhar.

Não temos a morte na agenda. Ela quase sempre nos pega de surpresa. Ela arrebenta, destroça, devasta. Especialmente quando é prematura e quando é desmedida. Mas também quando a nossa memória diz que ali não era apenas uma boate. E que na frente dali não era apenas um supermercado.

10 comentários:

Emanuel Mattos disse...

Oi, Marcia. Tomei a liberdade de publicar seu texto em meu Facebook. Beijão.

Nádia Lopes disse...

Lindo e emocionante teu texto Marcia, tambem gostaria de compartilhar, com o teu devido credito, por que me identifiquei horrores....me emocionei aqui, e pobre desse psicanalista que nada entende gente, de coletivo, de perda e dessa dor que ainda vai doer muito...eu estou ainda com um oco por dentro e um desvontade danada de quase tudo...viver ficou mais pesado...grata por me dar voz! beijo Nadia Lopes

karla siqueira disse...

Lindo descrevestes maravilhosamente a nossa SANTA MARIA!abraço
karla

Márcia Ilha Marques disse...

Márcia, tbém compartilhei teu texto no meu mural do face, primeiro não sabia a autoria, mas depois minha amiga Nádia Lopes encontrou e aí coloquei.
Muito lindo! Parabéns e obrigada!

Bernadete disse...

Maravilhosa manifestação. Deviam cassar o diploma do citado blogueiro. A dor de uma cidade, de um estado, de um país é realmente autêntica. Não tem como ser diferente, afinal nos identificamos com as vítimas, com os familiares das vítimas, com o cenário da tragédia, com as pessoas que auxiliaram anonimamente, desde os profissionais da saúde, os policiais, os voluntários, os militares que fizeram o pior das tarefas recolhendo os corpos... Fomos todos coadjuvantes dessa inimaginável tragédia. A dor é autêntica sim. As vezes sinto-me culpada pelo alívio que senti na madrugada do dia 27, ao ouvir a voz do meu filho avisando pelo telefone que estava bem. Chorei ao reconhecer alunos entre os nomes, filhos de amigos e colegas, amigos dos meus amigos... Chorei ao ver as bandeiras e panos pretos nas lojas, repartições públicas, e até em prédio particulares na nossa cidade. Parabéns pelo lindo texto- tomei a liberdade de compartilha-lo.

Anônimo disse...

MARCIA BENETTI, SUAS PALAVRAS TEM MUITO SENTIDO. QUANDO FALA DOS SENTIMENTOS DAS FAMILIAS, ENLUTADAS.
TRISTE, É SIM.
MAS POSSO SUGERIR, PARA TI, AQUI, DISTANTE , EM CUIABA, DAR UMA PASSEADA, NUM IMPORTANTE EVENTO QUE ESTA OCORRENDO AÍ, SANTA MARIA, NESTE DIAS 9 A 12/FEV/2013 UM ENCONTRO ESPIRITA - CONCAFRAS - DEVEM ESTAR PRESENTES PESSOAS DE TODOS O MUNDO, TALVEZ UMAS 5.000 PESSOAS; INTERESSADAS EM APROFUNDAR CONHECIMENTOS JUSTAMENTE SOBRE O PÓS MORTE, OU, MELHOR, SOBRE COMO VIVER UMA VIDA, EM HARMONIA, PRINCIPALMENTE, COM NOSSA FAMILIA TERRENA, LOCAL DE NOSSOS MAIORES DESAFETOS, COM SÓLIDAS PENDENCIAS, SECULARES, A RESOLVER, A VIDA ANTES DA MORTE; POIS QUE AMBAS ESTÃO RELACIONADAS ESPIRITUALMENTE.
DESCONHEÇO TUAQS CRENÇAS RELIGIOSAS, MAS ESPIRITISMO NÃO É CRENÇA, É FILOSOFIA.
NOS É COLOCADA, PELOS ESPÍRITOS ILUMINADOS, QU JA TRANSITARAM POR AQUI, E OBTIVERAM SALVO CONDUTO PARA SUBIR ACIMA DOS DEGRAUS DA TERRA, PLANETA DE REGENERAÇÃO HOJE.
ESTAS PESSOAS 232 QUE MORRERAM, NA BOITE, AÍ, EM SANTA MARIA, NESTE MOMENTO, SEUS ESPIRITOS PRECISAM APENAS DE ORAÇÃO SENTIDA, NÃO CHOROSA, MAS SENTIDA, RESPEITOSA; DEVEMOS NOS DIRIGIR EM ORAÇÃO AO DEUS PAI, A VIRGEM MARIA, MÃE/MADRINHA DO PLANETA TERRA.
MARCIA, PROCURE IR AO CONCAFRAS,COMEÇA AMANHÃ. ENCONTRO ESPIRITUAL DA MAIOR VALIA, E PROFUNDIDADE; QUEM SABE ALÍ, VOCE E AS PESSOAS ENLUTADAS, ENCONTREM, UMA VIBRAÇÃO DE ENTENDIMENTO, DO QUE OCORREU COM SEUS ENTES QUERIDOS. E PROSSIGAM ESTUDANDO SOBRE ISSO. COLABORANDO PELA DISSEMINAÇÃO DA LUZ SOBRE A TERRA.

ABRAÇOS, MÁRCIA.

francisco cuiaba

vera disse...

O nome deste profissional é Lucas Nápoli, como psicologa, irei denuncia-lo ao conselho e acho que os colegas deveriam fazer o mesmo. Não devemos generalizar, profissionais bons e ruins existem em todas as profissões. Mas o texto deste psicologo reflete total falta de respeito e compaixão com as pessoas. Absurdo. Envio desculpas como colega psicologa, sinto-me envergonhada.

Empilhashop disse...

Parabéns pelo blog, ótimo trabalho e muito bem estruturado. Att www.Empilhashop.com.br (empilhadeiras usadas)

Unknown disse...

Oi, Marcia,
Parabéns pelo blog. Os textos são bem emocionantes, porém tenho sentido falta de poder acompanhá-los mais... Faz tempo que não vejo atualizações suas. Quando teremos novidades?
Abs, artista plástico Quim Alcantara
http://quim.com.br/

Valdeir Vieira disse...

Blog de muito bom gosto!

http://www.valdeirvieira.com/unique-residencial/