07 julho 2006

Pantaleão, 127

na nossa infância este era um mês de frio e geada. de abrir a boca e ver a bobagem se concretizar no ar, fumaça espessa de frio. de sentir os dedos das mãos e dos pés, sentir a ponta do nariz, sentir a dobrinha da orelha. um mês de tremer sem ser de medo. tremer de frio e se esquentar. brigar de almofada, se embolar uns nos outros até se esquentar tanto que era preciso arrancar tudo, arf, ufa, rápido. julho também era o mês dos nosso aniversários. frio, férias, presentes. perfeito.

hoje o meu irmão faz aniversário. não faz frio. não tem palavrinha espessa no ar, nem pontinha congelada de nariz. não estou em férias, nem ele. estamos longe, e não pude mandar presente. não tem briga de almofada, nem embolação, nem arrepio tremeliquento.

tenho muitas lembranças do Nando, e em todas ele se impõe: ou pela fala, ou pelo olhar, ou pelo silêncio. nunca fica no fundo da sala, passa despercebido ou é coitadinho. sempre diz o que pensa, dá a cara a bater, desenvolve um argumento, se posiciona. finge que não gosta de ser contestado, mas na verdade só admira quem se coloca em pé para discutir com ele de igual para igual. todas as lembranças que tenho dele são de força, veemência, contundência — e, sim, profundo recolhimento, dor vivida em solidão, racionalização constante do irracional que mora nele.

queria olhar pela janela e encontrar lá fora os traços de uma madrugada de geada. queria também encontrar outros traços concretos, de outras pessoas, que hoje vivem apenas no mundo subjetivo e traiçoeiro da memória. mas, se existe uma felicidade real no dia de hoje, é saber que lá fora existe este cara — e que, ainda que muito tenha mudado, tudo está lá.

é maravilhosa esta certeza de que, não importa o que aconteça e para onde a vida me leve, o mundo não é grande o suficiente para nos afastar, a certeza de que nossas diferenças de gosto e de perspectiva não têm qualquer importância. não são muitos que podem ter irmãos assim. o único presente que eu gostaria de dar, e que ele sabe, fica para o dia em que eu acordar cheia de poderes mágicos, bastando dizer "faça-se". hoje me resumo aos abraços e beijos virtuais e por telefone. e ao amor sincero que foi gerado no galinheiro da Dr. Pantaleão, 127.

2 comentários:

Ana disse...

Ter a mesma história, falar a mesma língua, fazer parte do mesmo triângulo, que se quebrou cedo demais, sentir a mesma dor, se amparar um no outro, não precisar falar nada...
Irmãos são, sim, um presente que a vida dá.

Telejornalismo Fabico disse...

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vc é uma privilegiada.
ele também.



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