Renan, em pose de beberrão; Nando, sempre rebelde; e eu, tri tímida
lembro de tantas coisas do Renan, que as lembranças se misturam em tempos e lugares. até hoje tenho um Gordo e um Magro que ele me deu e é impossível ver qualquer coisa deles sem que a memória, esta caixa que se abre sem avisar, ative um pouco de melancolia. uns dias são bons, outros nem tanto. e hoje, depois de quase nove anos de ausência e seis anos de terapia, falar sobre isso não deixa de ser um exercício de auto-reconstrução.
a primeira cena que lembro de mim é aos dois anos, numa tarde muito quente de verão, tomando banho de mangueira no pátio da minha casa. ele estava lá, e eu lembro da sensação de alegria e de liberdade. não tenho nada arquivado conscientemente antes disso. portanto, é como se praticamente não existisse antes daquela tarde.
daí para a frente, são imagens soltas que se recompõem eventualmente. na maioria dessas imagens, antes do colégio e dos amigos, algumas pessoas fundamentais da infância são âncoras de uma afetividade que perdura até hoje, ainda que algumas dessas pessoas não existam mais, como ele, minha prima Arlete e minha avó.
o Renan sempre foi estranho. aprendeu a ler sozinho, observando o Nando, nosso irmão mais velho, que tinha ido para a escola um ano antes dele. observando escondido, pela janela, com aqueles olhos que nunca mentiram. quando chegou ao colégio, incomodava os outros. minha mãe foi chamada para discutirem o que fazer com o impertinente. decidiram que ele iria desenhar enquanto os colegas terminavam as tarefas. puxa, que ótimo. até que os desenhos começaram a voltar. “este menino deve ter algum problema”, pensaram. ele só desenhava tanques de guerra, aviões lançando bombas e gente morrendo. tiros para todos os lados e sangue escorrendo. “mas ele só tem sete anos”, disse minha mãe, “deixem o guri desenhar”.
e ele desenhou. sempre, e muito, e bem. pouco antes de morrer, numa conversa em um balanço na casa de meu pai, ele me disse que iria comprar cavalete, telas, tintas, pincéis e finalmente começar a pintar. não deu tempo, mas saber que ele iria de algum modo desenvolver um de seus muitos talentos é um recado que procuro me lembrar.
cozinhava bem, inventava pratos, recebia os amigos. também cozinhava apenas para si mesmo. não tinha regras na hora de se divertir. podia beber ou não beber. comer ou não comer. gostava de caminhar, de dirigir, de varar a noite vendo filmes e de pescar em solidão. tudo era bom, a seu tempo. para cada coisa, uma companhia, e assim tinha muitos e diferentes amigos.
cinema, música, filosofia e política eram suas paixões. para um dentista, ele tinha uma biblioteca de ética, política e filosofia inacreditável. adorava Fernando Pessoa e me deu dois livros dele. era ateu e tinha enorme curiosidade sobre ciência e tecnologia. experimentava tudo que era novo e foi uma das primeiras pessoas com quem troquei e-mails, na metade dos anos 90. tinha uma impressionante capacidade de articular conceitos complexos e gostava de debater idéias. até o fim, mesmo que perdesse. aliás, ele se deixava convencer.
o Renan adorava gente jovem. talvez por isso fosse um ortodontista, com um consultório sempre cheio de uma gurizadinha adolescente. se divertia com eles. de certo modo, nunca cresceu. sempre foi aquele guri que desenhava, jogava handebol, subia em árvore e voltava para casa depois de ter perdido a chave. ele perdia tudo.
gostava de cães e criou um pastor, o Big, que me fez lentamente superar o trauma de um cachorro que avançou em mim quando criança. viajou sempre que pôde, para muitos lugares, e de todos me mandava cartões e mensagens. me trazia presentes bobos que jamais esqueci, pois adoro presentes bobos. tinha um fino senso de humor e ironia para ver o mundo.
era um militante de esquerda cheio de ideais, sensível à miséria e à injustiça de uma distribuição de renda que impede tantas pessoas de conquistar uma cidadania plena. era generoso com seus amigos e era capaz de se colocar no lugar do outro para tentar compreender o que pensava. ele era também rebelde, brincalhão, brigão e desbocado.
fui morar com ele depois que se separou. não esqueço também de sua extrema sinceridade ao dizer como se sentia e por que queria me ter “no quarto ao lado, neste momento de solidão”. é estranho lembrar disso agora, quando penso nele como alguém forte e corajoso, o que sempre foi, e me dar conta de sua humanidade complexa. foram dois bons anos para mim, de aprendizado sobre uma certa lógica masculina e sobre o gentil significado da palavra tolerância.
por fim, era louco por crianças e tinha uma paciência incrível para brincar com elas. adorava nossos sobrinhos, Aninha e Henrique, seu afilhado. e amava profundamente suas filhas, Rafaela e Julia. tantas vezes me falou sobre o que desejava para elas: que estudassem, que entendessem que seus atos tinham conseqüências para si e para os outros, que desenvolvessem seus talentos, que fossem solidárias e que fossem felizes. é impossível para mim não ver nelas traços indiscutíveis dele, que talvez estejam no genoma, talvez tenham ficado enraizados nelas mesmo com o pouco tempo de convivência. nunca saberei.
julho é sempre um longo período esquisito. é aniversário do meu irmão, Fernando, e o meu próprio. no dia 17, o Renan faria 47 anos. morreu com 38, jovem demais e sem se despedir. não deixamos de comemorar nossos aniversários por causa desta ausência, que afinal é sentida sem data marcada. mas de algum modo a celebração ficou mais acanhada e menos divertida, como sempre acontece quando resta um vazio.
o que eu sei é que as dores de uma perda são amenizadas com o tempo e quando compreendemos que aquela vida foi vivida com intensidade, generosidade e prazer. existe uma espécie de sossego emocional quando você percebe que viver é um tempo, viver tem uma duração e ninguém pode ser resumido a uma frase, uma fotografia ou um post num blog. quando alguém alcança este nível de perenidade junto aos outros, sua vida fez sentido. e, se ela fez sentido, você vive também pelo sentido que isso lhe faz.
a primeira cena que lembro de mim é aos dois anos, numa tarde muito quente de verão, tomando banho de mangueira no pátio da minha casa. ele estava lá, e eu lembro da sensação de alegria e de liberdade. não tenho nada arquivado conscientemente antes disso. portanto, é como se praticamente não existisse antes daquela tarde.
daí para a frente, são imagens soltas que se recompõem eventualmente. na maioria dessas imagens, antes do colégio e dos amigos, algumas pessoas fundamentais da infância são âncoras de uma afetividade que perdura até hoje, ainda que algumas dessas pessoas não existam mais, como ele, minha prima Arlete e minha avó.
o Renan sempre foi estranho. aprendeu a ler sozinho, observando o Nando, nosso irmão mais velho, que tinha ido para a escola um ano antes dele. observando escondido, pela janela, com aqueles olhos que nunca mentiram. quando chegou ao colégio, incomodava os outros. minha mãe foi chamada para discutirem o que fazer com o impertinente. decidiram que ele iria desenhar enquanto os colegas terminavam as tarefas. puxa, que ótimo. até que os desenhos começaram a voltar. “este menino deve ter algum problema”, pensaram. ele só desenhava tanques de guerra, aviões lançando bombas e gente morrendo. tiros para todos os lados e sangue escorrendo. “mas ele só tem sete anos”, disse minha mãe, “deixem o guri desenhar”.
e ele desenhou. sempre, e muito, e bem. pouco antes de morrer, numa conversa em um balanço na casa de meu pai, ele me disse que iria comprar cavalete, telas, tintas, pincéis e finalmente começar a pintar. não deu tempo, mas saber que ele iria de algum modo desenvolver um de seus muitos talentos é um recado que procuro me lembrar.
cozinhava bem, inventava pratos, recebia os amigos. também cozinhava apenas para si mesmo. não tinha regras na hora de se divertir. podia beber ou não beber. comer ou não comer. gostava de caminhar, de dirigir, de varar a noite vendo filmes e de pescar em solidão. tudo era bom, a seu tempo. para cada coisa, uma companhia, e assim tinha muitos e diferentes amigos.
cinema, música, filosofia e política eram suas paixões. para um dentista, ele tinha uma biblioteca de ética, política e filosofia inacreditável. adorava Fernando Pessoa e me deu dois livros dele. era ateu e tinha enorme curiosidade sobre ciência e tecnologia. experimentava tudo que era novo e foi uma das primeiras pessoas com quem troquei e-mails, na metade dos anos 90. tinha uma impressionante capacidade de articular conceitos complexos e gostava de debater idéias. até o fim, mesmo que perdesse. aliás, ele se deixava convencer.
o Renan adorava gente jovem. talvez por isso fosse um ortodontista, com um consultório sempre cheio de uma gurizadinha adolescente. se divertia com eles. de certo modo, nunca cresceu. sempre foi aquele guri que desenhava, jogava handebol, subia em árvore e voltava para casa depois de ter perdido a chave. ele perdia tudo.
gostava de cães e criou um pastor, o Big, que me fez lentamente superar o trauma de um cachorro que avançou em mim quando criança. viajou sempre que pôde, para muitos lugares, e de todos me mandava cartões e mensagens. me trazia presentes bobos que jamais esqueci, pois adoro presentes bobos. tinha um fino senso de humor e ironia para ver o mundo.
era um militante de esquerda cheio de ideais, sensível à miséria e à injustiça de uma distribuição de renda que impede tantas pessoas de conquistar uma cidadania plena. era generoso com seus amigos e era capaz de se colocar no lugar do outro para tentar compreender o que pensava. ele era também rebelde, brincalhão, brigão e desbocado.
fui morar com ele depois que se separou. não esqueço também de sua extrema sinceridade ao dizer como se sentia e por que queria me ter “no quarto ao lado, neste momento de solidão”. é estranho lembrar disso agora, quando penso nele como alguém forte e corajoso, o que sempre foi, e me dar conta de sua humanidade complexa. foram dois bons anos para mim, de aprendizado sobre uma certa lógica masculina e sobre o gentil significado da palavra tolerância.
por fim, era louco por crianças e tinha uma paciência incrível para brincar com elas. adorava nossos sobrinhos, Aninha e Henrique, seu afilhado. e amava profundamente suas filhas, Rafaela e Julia. tantas vezes me falou sobre o que desejava para elas: que estudassem, que entendessem que seus atos tinham conseqüências para si e para os outros, que desenvolvessem seus talentos, que fossem solidárias e que fossem felizes. é impossível para mim não ver nelas traços indiscutíveis dele, que talvez estejam no genoma, talvez tenham ficado enraizados nelas mesmo com o pouco tempo de convivência. nunca saberei.
julho é sempre um longo período esquisito. é aniversário do meu irmão, Fernando, e o meu próprio. no dia 17, o Renan faria 47 anos. morreu com 38, jovem demais e sem se despedir. não deixamos de comemorar nossos aniversários por causa desta ausência, que afinal é sentida sem data marcada. mas de algum modo a celebração ficou mais acanhada e menos divertida, como sempre acontece quando resta um vazio.
o que eu sei é que as dores de uma perda são amenizadas com o tempo e quando compreendemos que aquela vida foi vivida com intensidade, generosidade e prazer. existe uma espécie de sossego emocional quando você percebe que viver é um tempo, viver tem uma duração e ninguém pode ser resumido a uma frase, uma fotografia ou um post num blog. quando alguém alcança este nível de perenidade junto aos outros, sua vida fez sentido. e, se ela fez sentido, você vive também pelo sentido que isso lhe faz.
21 comentários:
caramba, me apaixonei pelo Renan. Mesmo. Agora a lembrança dele vai estar guardada comigo também.
Saudade assim dói, né? Mas traz "coisas boas" tb. Bjo pra ti, pinta.
belo texto.. deu vontade de conhecer ele
pois é, belo texto...
eu queria ter escrito um assim quando perdi alguém, ano passado, mas não consegui.
Como Roberto Carlos, eu tinha tanto para falar, mas com palavras não sabia dizer...
só tem uma pessoa no mundo que eu realmente tenho medo de perder... meu irmão! :(
brigado pelo texto, pinta!...
Como blogar é bom! É uma forma de se pensar na vida, em si e nos outros que nos rodeiam. É uma forma de compartilhar o que se pensa. E agora tuas memórias também são nossas. Obrigado por repartir isso conosco, Marcia. :-)
marcia, apesar de toda dor que o post passa, também passa amor, e eu me sinto bem quando as pessoas conseguem, na dor, separar só o amor e deixar o resto pro inevitável. também perdi uma pessoa muito querida e muito próxima, embora não tão cedo. e até hoje, quando sonho com ele, é sempre do jeito que foi: ERA SEMPRE BOM ESTAR COM ELE, o meu vô-pai.
sobre o renan, eu fico me perguntando: já notou como as pessoas iluminadas nos deixam cedo? são uns cometas, uns estrelinhas que explodem na nossa vida e depois saem do palco. nunca é fácil lembrar dessa ida, mas é sempre MARAVILHOSO lembrar da sua estada.
bjos e fica bem.
*
e cada vez mais o que tu admira nele acaba incorporado em ti mesma.
a dor é real, mas a mudança que ela possibilita faz sentido na transformação que põe em curso.
*
Sem palavras!!!! Lindo sentimento, pena que dói.
Lindo, me emociomei com tuas lembranças e com o teu amor explícito!!!!!
Bjos
muito bonito, mesmo.
eu geralmente fico puto quando pessoas escrevem "muito bonito, mesmo" no meu blog, por que elas não dizem nada, parece que comentaram por obrigação.
mas o que tu vai dizer, num texto desses? muito bonito, mesmo. Nada mais.
"...a ausência é sentida sem data marcada."
que cou-sa!
não convivi com o Renan, mas sei que ele era muito querido pelos meus sobrinhos, amigos dele.
fiquei emocionada com teu texto, pinta.
bjim.
assim como disseram muitos, não há como não se emocionar com os sentidos destas palavras. conseguir tecer isso com tanta intensidade traduz o que você escreveu no final do texto.
e compartilhar esse sentido também é um grande gesto.
:o)
...
Marcia, palavras sobram neste momento...deixar a emoçao fluir...e sentir toda a saudades que bate forte no seu peito.
Obrigado Marcia, sem te conhecer pessoalmente admiro a sua capacidade de escrever as emoçoes e de dividir conosco seus pius mais intimos.
beijinhos carinhosos cheios de energia positiva do outro lado do oceano
Que texto lindo! Fiquei emocionada, pois me fez lembrar de situações da minha vida.
Fora que ando num momento pra baixo, pois meu marido tá fazendo um curso fora do brasil, e ficar em sampa sozinha é foda...
beijos e obrigada por compartilhar lembranças lindas assim...
Marcia minha querida.
Maravilhoso pela humanidade que encerra. Poucas pessoas tem a coragem de escrever o que escreveste.
Elas tem medo de se tornarem humanas e com isto terem de abandonar a sua pseudo onipotência que lhes dá uma pseudo segurança.
Tem momentos que se tem um ímpeto de debochar, até porque a gente não aguenta se dar conta de que o que expressastes, tão bem,também existe dentro da gente. Só que assusta. É portanto preciso desdenhar dele para que não chegue tão perto. Ou então, também é uma saída, le-lo, examiná-lo, muito superficialmente.
Outro dia fugi de um post teu, achei que iria falar do Renan, mas era do Nando. Tive medo que “essa caixa que se abre sem avisar” apertasse os meus dedos. Confesso que meus dedos vão doer por muito tempo, mas ler este post me fez bem. Obrigada!
as perdas dóem e como, mas pelo menos tivesse a chance de reunir inúmeras lembranças boas. tenho amigos e parentes que perdi e que lamento por hoje não ter tantas recordações boas assim. alguns não tive tempo suficiente para viver junto, outros tive, mas a saudade e a tristeza da perda me fazem lamentar porque não os aproveitei mais.
belíssimo texto!
bjs
Márcia, querida
Sobra emoção, faltam palavras.
Mas lembre-se... só sentimos saudade de quem nos é tao especial...
bj no coração, minha favorite teacher...
chegando agora no teu blog e lendo este texto lindo.
adoro vir aqui ler teus pius intimos, são sempre cheios de amor.
saudade ;)
bjos
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