29 setembro 2007

o narrador

faz tempo que quero comentar o perfil de Fernando Henrique Cardoso, publicado na Piauí de agosto. o texto de João Moreira Salles é uma preciosidade. está ali seu olhar de documentarista, que vai descrevendo o que percebe, sem julgar o perfilado. não é preciso. o ex-presidente tucano é tão rico em nuances, que Moreira Salles se posiciona para fazer o que todo bom jornalista deveria fazer: narrar.

ele acompanhou FHC durante dez dias, em sua temporada anual em universidades norte-americanas e depois durante uma reunião em Madri. fez um belo trabalho de repórter, entregando-nos um perfil contundente. Fernando Henrique está ali, como nunca vi em qualquer matéria de jornal ou revista. sem loas e sem críticas, está como se mostrou.

sabemos então que ele tem um agente para negociar suas palestras pelo mundo: Harry Walker, o mesmo de Bill Clinton. “Em média, me oferecem 40 mil dólares; ele [Harry] fica com 20%”, diz. “Em Praga, uma vez, como éramos um grupo de palestrantes, não cheguei a falar nem vinte minutos – pagaram 60 mil dólares.”

Fernando Henrique detesta Bush e Delfim Netto e derrama admiração sobre Clinton, Felipe González e Nelson Mandela. traça opiniões paradoxais sobre Lula e se considera a última coca-cola gelada do deserto: “Sou mesmo a única oposição”.

a vaidade de FHC atravessa todo o texto. ao ser convidado por um professor de Sociologia da Universidade Brown – onde recebe 70 mil dólares, por um contrato de apenas quatro semanas de permanência – para falar sobre sua experiência para os alunos, ele responde: “Ah! Se é para falar de mim mesmo, então é fácil. É uma das coisas que mais gosto de fazer”. mais tarde, FHC brilha diante de uma estudante:

Uma aluna o aguardava na porta da sala 218. FHC, como de hábito, não sabia do que se tratava. A garota, estudante de relações internacionais, havia marcado uma entrevista para o jornalzinho da faculdade e trazia um exemplar do The Accidental President of Brazil, as memórias de FHC, cheia de post-its espetados. O autor sorriu, garboso. As perguntas, quase inocentes – Por que o senhor publicou este livro? Qual foi a reação do público? –, novamente receberam respostas elaboradas. A cada resposta, a garota exclamava “Oh, thank you!”. Ao explicar a recepção do público à obra, FHC não resistiu: “Na Amazon, os leitores avaliam os livros por um sistema de estrelinhas. My book is full of stars!” “Oh, thank you!”.

o lado principesco do ex-presidente espia o leitor, enquanto ele espera uma conexão no aeroporto de Atlanta:

Sentou-se ao lado de uma senhora que folheava a revista People e chupava um picolé. Meia hora depois atinou que, se era [passagem] executiva, então dava direito a sala VIP. “E eu sofrendo no meio do povo à toa”, deduz, recolhendo seus papéis à pasta.

a melhor parte, porém, é a que narra sua participação em uma reunião do chamado Clube de Madri – que reúne 66 ex-governantes mundiais. em meio ao tédio e à falta de foco, tentam manter o poder a influência discutindo o aquecimento global, o apoio à reforma constitucional no Equador e a construção de uma sociedade democrática no Kosovo. participam ainda de uma conferência sobre cidades. vemos surgir um FHC que se orgulha de ser um embusteiro:

A primeira mesa-redonda, “Protagonismo da grande cidade e o papel das políticas públicas”, dura quase duas horas. Na primeira fila, César Gaviria [ex-presidente da Colômbia] dorme à larga, a cabeça para trás. Fernando Henrique cochila discretamente, com o rosto apoiado na mão, como se refletisse. Na segunda mesa, “Instrumentos ‘suaves’ de política urbanística”, caberá a ele sintetizar as idéias expostas. Duas horas depois, assume o microfone: “Não tenho muito a acrescentar porque minha única experiência com cidades foi a eleição que perdi para prefeito de São Paulo”, desdenha, numa típica abertura FHC II. Passa então a rechear sua fala com a “coesão mecânica” e a “coesão orgânica” de Durkheim (mais tarde, no táxi: “É o bê-á-bá da sociologia. Olhei em volta, vi que não tinha um sociólogo, mandei ver”), e citações ao sociólogo alemão Tönnies, que explora os conceitos de sociedade e comunidade ou, no original, Gemeinschaft e Gesellschaft, como soltou Fernando Henrique em bom sotaque. Foi o quanto bastou para inspirar pasmo e aplausos de admiração. (No mesmo táxi: “São as únicas palavras que sei em alemão”.)

João Moreira Salles é o diretor de um dos melhores documentários que já vi no cinema, sobre o pianista Nelson Freire. neste perfil sobre FHC, o cineasta revela como o texto jornalístico pode conter um narrador, aquele que guia o olhar do leitor por onde ele mesmo esteve, mostrando o que ele mesmo viu. e o que ele viu, com precisão, técnica e sensibilidade, está traduzido de forma crua, mas com uma arquitetura textual sofisticada. síntese que deveria ser buscada por todos que praticam o jornalismo.

11 comentários:

Penkala disse...

né?

Penkala disse...

poutz. fui ler o texto. a cada parágrafo, paro, penso, suspiro um pouco e me pergunto se eu deveria dormir com esse barulho. sigo lendo porque tenho uma curiosidade mórbida muito insistente. porque só com paciência ou com alguma motivação mórbida mesmo pra conhecer um pouco mais do FHC sem ficar puta.

e sobre o post especificamente, só uma coisa: esse jornalista narrador julga sim. todos julgamos, né? o discurso está ali e eu leio julgamentos o tempo todo. acho que dizer algo e não dizer outro algo já pode ser estar julgando. mas ele não diz que julga. ele não dá o peixe, só ensina a gente a pescar. e é isso que eu gostei mais no texto dele.

eu admiro o jornalismo inteligente. faz até a gente esquecer o bandiputo que a profissão abriga.

Maroto disse...

todo mundo julga e critica o tempo todo, sim, porque é inerente ao discurso. Mas essa narrativa que não 'se acha' é capaz de criticar com muito mais pertinência e contundência, justamente porque não é ela mesma (a crítica) altamente criticável.

Aos sábados, os urubus se enrolam e perdem a tradicional clareza e objetividade, eu sei.

Anônimo disse...

"sociedade e comunidade ou, no original, Gemeinschaft e Gesellschaft"

Eu nunca estudei sociologia, mas entendo que em alemão seja o contrário:
sociedade = Gesellschaft
comunidade = Gemeinschaft

Que falta de originalidade!


A propósito, como é que se faz para espetar um post-it?

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Urubua
Adotei uma gatinha nova: Carmencita Jr.
Ela estava com rinotraqueíte. Precisou tomar antibióticos - injeção e comprimidos.
Acredita que a injeção causou uma ferida enorme? E o abdômen ficou cheio de carepa, como cabeça de neném humano.
Fiz um escândalo na clínica.

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Um grande beijinho!

Arnaldo Heredia Gomes disse...

O primeiro voto que dei na vida foi para FHC. Eu tinha acabado de completar 18 anos e ele era candidato a senador, em pleno regime militar. Naquela época, votar em Fernando Henrique era a mais clara demonstração de descontentamento com o regime. Naquela época, pensávamos que ele era um intelectual brilhante. Ele pensa até hoje.

Fernando Henrique foi a primeira das minhas decepções na política. Depois vieram outros. José Serra, Genoíno, e agora, Lula fica tentando, bravamente, entrar nesta lista.

A vaidade é um elemento, muito claramente, presente em qualquer político. Em qualquer pessoa pública, pra falar a verdade. Mas em Fernando Henrique, a vaidade é de um exagero inenarrável. É caso de internação. É caso de polícia!

Thelma disse...

E ele ganha mares de dinheiro...ridículo!
Ontem, vi o documentário SANTIAGO, outro trabalho interessante do João Moreira Salles sobre o mordomo que eles tiveram em sua casa do Rio.

Graziana Fraga dos Santos disse...

o texto é muito bom, como bom narrador faz a gente imaginar as cenas todas...

e FHC continua ganhando rios de dinheiro, achei inteligente a sua ideia de ter o centro FHC, coisa que esperava, vaidoso que só ele... (típico geminiano)

obrigada pela dica ;)

Adriana Amaral disse...

ahhhhhh eu li esse texto faz um tempinho e achei ótimo, se nao me engano ele ta fazendo um doc. sobr eo fhc? ou estou viajando?
em tempo, vou djá procurar um agente pra vender minhas palestras sobre vampirismo nos eua hahhahahaa vou ficar rica e dai distribuo as verbas entre nós.. rs

Anônimo disse...

uau! fiquei com vontade de ler...

Demétrio de Azeredo Soster disse...

E quem poderia supor que uma revista francamente inspirada em um tijolo anacronicamente bolorento, caso da Caros Amigos, pudesse estar matando a pau há tanto tempo? Como esquecer das últimas frases da matéria sobre o destino dos assassinos de Che, em que o repórter, a partir de uma pergunta aparentemente frugal, resolve toda a matéria, incluindo suas entrelinhas? Que fale: "Volto a pedir uma entrevista. 'Não, filho, vai me desculpar. Já te disse que não posso.' Já é menos incisivo. Mantém-se em silêncio. Parece farto de ter a vida seqüestrada por Che. Numa última tentativa, lhe pergunto o que foi fazer em Virginia. 'Jardinagem. Fui trabalhar um pouco como jardineiro', responde. Olho para a frente da casa. Terán acompanha. Há uma única planta, uma avenca esturricada pelo sol num vaso de plástico branco sujo." Longa vida à Piauí.

Anônimo disse...

Arnaldo ! faço minhas as tuas palavras. FHC foi o primeiro embuste socialista, depois vieram os outros...