27 abril 2008

homem-cavalo

a Revista da Folha de hoje (acesso para assinantes) traz uma interessante reportagem sobre a vida dos catadores de lixo de São Paulo. Gustavo Fioratti passou quatro dias na pele de um carroceiro. relata a compra de uma carroça de ferro, a convivência com outros catadores em um albergue, a rotina pesada e perigosa de carregar uma armação de 90 quilos pelas ruas paulistanas, em busca do lixo de quem finge que o catador não existe. relata também o loteamento de pontos de coleta e a venda do papel recolhido para um atravessador , mostrando aquilo que todos sabemos: até na pobreza existe um capitalista que lucra 150% usurpando o trabalho dos outros.

Fioratti, que se nomeia "um homem-cavalo", ganhou dinheiro apenas para comer. é evidente que sua inexperiência no mercado contribuiu para arrecadar apenas R$ 13,60 com mais de 50 quilos de lixo reciclável. mas a realidade de muitos não está distante disso. aqui estão parte de seu relato e, provavelmente, a maior lição de um excluído: “ignorar o mundo que te ignora é o melhor a ser feito”.

“Foi somente me misturando a eles [carroceiros] que pude ver, ouvir e sentir: mexer no lixo alheio pega fundo na auto-estima, principalmente quando sobe um cheiro de dejetos. Mesmo que, no terceiro dia, eu tenha experimentado a chance de me habituar ao serviço.

Tornar-se um trambolho atrapalhando as vias também é questão de costume. A polícia passou fazendo piada, ou humilhando, não sei direito. Ignorar o mundo que te ignora é o melhor a ser feito. Ou sua única chance, no momento. Que buzinassem alto.

Vários carroceiros dizem que estão no ramo por opção. Dá dinheiro e não há chefia. Posso atestar o prazer de navegar sem bússola, mesmo nos dias em que o mar não está para peixe. E há várias outras coisas gratificantes costurando a malha que os envolve. Mas a palavra 'opção' eu recusaria.

Principalmente porque deu raiva do sucateiro que comprou meu dia de trabalho por míseros R$ 7. Também quis vomitar na mulher que pediu para um segurança me tocar da porta da sua loja chique. Justo eu, que ia carregar seu lixo para longe dali.”

gosto da Folha quando faz estas matérias. houve um tempo em que pautas como esta, com o repórter se misturando à vida que quer narrar, eram mais freqüentes no jornalismo brasileiro. são pautas que exigem tempo, planejamento, disposição do repórter e confiança do editor. sobretudo, exigem sensibilidade para observar o mundo de um outro ponto de vista. são pautas que pedem tudo que lamentavelmente parece mais escasso ou desvalorizado no jornalismo contemporâneo: tempo, preparo, disposição, confiança e sensibilidade.

o relato poderia ter sido mais isso ou mais aquilo. não importa. é um alento ver que cadernos de domingo não trazem apenas futilidade, matérias repisadas sobre os comportamentos da classe média e textos descartáveis sobre o mesmo.

12 comentários:

Telejornalismo Fabico disse...

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pena que a folha de são paulo não exista não atue no sul.




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Adriana Amaral disse...

Marcia, ler isso me lembra de pq eu entrei no jornalismo...bjo

Unknown disse...

Bacana destacar coisas boas!
Quem sabe elas se multiplicam?

Anônimo disse...

Muito legal a dica. Li a reportagem e até parece um romance. Além da excelente idéia deles, o texto é impecável. Isso até me faz dar mais um voto de confiança à Folha. Andava de cara com eles depois da forma como o ombudsman foi trocado.

Deveríamos ver disso nas páginas dos jornais. Me faz repensar o olhar a essas pessoas.

SELHORST, Carlos Eduardo Hock disse...

Li seu texto através da indicação do professor universitáro que orientou o meu Trabalho de Conclusão de Curso, que por sinal foi basicamente o mesmo que foi publicado pela Folha. Eu desconhecia essa matéria da Folha, pois como moro em Santa Catarina, não é comum eu ter em mãos esse periódico. Meu TCC, que foi produzido no primeiro semestre de 2005, abordava o cotidiano dos catadores de lixo de Balneário Camboriú. Trabalhei com os catadores por exatamente 4 dias. Coinscidência? Provavelmente. Sempre me perguntei se meu trabalho, uma grande reportagem impressa, teria lugar em publicações impressas diárias. Pelo visto teria. Tenho curiosidade de ver o trabalho final, publicado na folha, como todo bom curioso. Se você quiser ler uma matéria, publicada em um jornal local, sobre meu TCC pode acessar esse link: http://www.jornaltribuna.com.br/geral.php?state=select&id_materia=4485

Se tiver curiosidade de ler meu TCC, mande-me um e-mail para que eu possa enviá-lo à você. (kadw@brturbo.com.br)

Desculpe o meu "ataque de escrita" em seu blog, mas como conheço o assunto de seu post a fundo, me empolguei. Um abraço.

SELHORST, Carlos Eduardo Hock disse...

O link correto da matéria que citei em meu comentário anterior é

http://www.jornaltribuna.com.br/
geral.php?state=select&id_materia=
4485

Quebrei o link em linhas pra ver se dessa vez aparece corretamente.

Um abraço.

Carlos Eduardo Carrion disse...

Meu único desejo na área do Jornalismo era ser reporter editor da folha policial. É ali que o romance da Vida poderia ser contado. Mas também faria uma Crônica Social, as veras, para mostrar um outro lado do ser humano, que aparece por detrás do glamour. Mas acho que em pouco tempo, neste segundo campo, eu seria submergido por processos de "dano moral".
Carrion, um ex-improvável-inviável-jornalista

Carolina de Castro disse...

Jornalismo pode ser poesia.
Jornalismo precisa de filosofia.
=P

LU K. disse...

Poxa, é muito legal mesmo.
Nem perto deste relato, mas com o seu devido valor, o repórter Paulo Renato Soares viveu a pele de um gari no último Globo Repórter. As reações dele foram ótimas!
beijos

Penkala disse...

é desse jornalismo humano que eu tenho orgulho. porque na falta de gente que se bote, simbolicamente, no lugar dos outros (e a gente sabe que tem uns que dizem que se colocam no lugar dos outros e se borram de medo de qualquer OUTRO), vem esse reporter e literalmente se coloca lá nesse lugar que é sempre o pior de todos.

pena, e tens razão, que isso demande um tipo de disposição e tempo que a maioria dos jornais não quer ter, ou não tem porque as futilidades de domingo são mais capitalizáveis.

Reges Schwaab disse...

li hoje. para emoldurar e pendurar em algumas redações por aí. tá faltando jornalista e texto assim.

Arnaldo Heredia Gomes disse...

Legal esta matéria da Folha, mas é cada vez mais raro, mesmo na Folha, este tipo de material. Acho que a imprensa, de modo geral, está um tanto embaçada. Sei lá. Tenho tido cada vez menos ânimo com os jornalões e revistas que temos por aí. E por conta disso, vou ficando cada vez menos informado. Outro dia, numa feijoada, começaram a falar de um padre e de uns balões e eu não tinha a menor idéia de que papo era aquele. Todo mundo olhou pra mim como se eu fosse um ET. Parece que padre voando com balões e crianças atiradas da janela dos apartamentos são as únicas notícias que circulam por aí. Eu me fecho.