08 junho 2010

enquanto ama


de todas as ilusões humanas, a idéia de andar só ou andar acompanhado é a que mais me fascina. não importa que idade você tenha, ou quanto Nietzsche de verdade tenha lido em sua vida. não importa o quanto você saiba que está sempre sozinho em suas decisões. não importa o quanto você saiba que seu mundo interior é o único mundo que você realmente pode conhecer, e ainda assim com imensas restrições.

é difícil aceitar que, embora o mundo exterior seja concreto, seus significados não passam de fantasmagoria. você não pode acessar os mistérios de outro ser humano, a não ser pela observação dos gestos e pela interpretação destes gestos a partir de seu próprio mundo interior. todo movimento que fazemos, como seres humanos, é sumariamente imaginário - e só ocorre a partir do único referencial que conhecemos, o nosso íntimo.

o amor é um destes lugares da imaginação em que recriamos a ilusão de não estarmos sós. não falo da relação concreta que envolve o amor, com suas grandes maravilhas e seus pequenos desastres (ou, às vezes, pequenas maravilhas e grandes desastres). falo do sentimento que nunca pode ser inteiramente expressado porque é de uma riqueza inacessível para o outro. o amor é um daqueles lugares do indizível, porque não há palavra, imagem ou gesto suficientemente preciso para representá-lo. não há vocabulário ou acervo capaz de fazer o outro compreender o quanto de amor há ali. é por isso que repetimos tanto e de tantos modos diversos, tentando cercar o outro de uma soma constante do nosso amor.

no entanto, por mais que exista um outro a quem amar, e que ele seja merecedor do nosso cuidado e do nosso tempo, a maior façanha do amor é esta ondulação interna que ele provoca. esta sensação de estar pleno de sentimentos fortes, intensos, reais. a sensação de estar vivendo. na expressão do amor, podemos ser mais ou menos generosos, mais ou menos dedicados, mais ou menos criativos. não importa. o que importa é esta qualidade que nos conferimos ao amar alguém. quando digo "você é especial" - por palavras, gestos ou olhares silenciosos -, estou dizendo "você é especial para mim, sou eu que te faço assim". e, se sou capaz de te fazer especial, é porque tenho esta riqueza interna inigualável ("caso você ainda não tenha percebido o quanto sou único").

somos todos passionais. uns mais, outros menos. uns gritam suas angústias, pedem explicitamente, atacam o objeto de amor. uns esperam, recolhem, se encolhem. seja como for, é um mundo intenso que está sendo vivido e experienciado. o mundo interior do qual partimos para todas as nossas aventuras e ao qual sempre retornamos, com mais bagagem e coisinhas a guardar.

as relações raramente acabam junto com o amor que sentimos. acabam antes, acabam depois. quando uma relação acaba, sofremos porque temos que enfrentar um processo longo de reacomodação. mas o que nos deixa perplexos, de fato, é quando percebemos que o amor que sentíamos acabou. quando olhamos uma pessoa e buscamos acessar aqueles velhos arquivos que nos faziam vivos pelo simples fato de estarmos os dois ali. não reconhecemos mais os conteúdos desses arquivos, eles agora parecem inadequados. não acompanhamos mais o andar singular daquela pessoa pelo corredor, ou entre as mesas de um restaurante, porque já não importa muito vê-la caminhar e importa menos ainda saber para quem ela está olhando. é neste momento que percebemos que algo do nosso interior já não está mais lá, onde costumava ficar.

neste momento, de uma estranha epifania, você finalmente sabe que o único mundo em que você pode navegar é o de suas emoções. você pode se guiar por metas, objetivos e planos. mas são as emoções que te fazem vivo. ao final o amor é esta capacidade interna de se sentir único. você quer ser ser vital, necessário, quer fazer a diferença (para alguém). o que você ama, em suma, é aquilo no qual você se torna enquanto ama.

27 comentários:

Alex Primo disse...

Marcia, como sabes, sou uma pessoa muito emocional! Adorei ler este teu post antes de viajar para a Compós.

Vou viver uma nova experiência de amor, com o nascimento de minha filha. E, assim, vou poder testemunhar novas dimensões desse sentimento que nos desafia há séculos.

Nina disse...

Belíssimo texto esse da sua madrugada!!
Há que sentir, apenas, o que é incomunicável e indizível. É bem na fronteira em que terminam as palavras que começa o maior do amor.
Essa sua poesia em prosa tem ecos de Pessoa e de Borges, de quem me fez lembrar um trecho:

"Séculos de séculos e apenas no presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e mar, e tudo o que realmente sucede, sucede a mim…”

Bjo

Bjo

Adriana Amaral disse...

Marcia, esse texto está belíssimo, até chorei. Pois é, eu sou passional demais.

Fred Tavares disse...

bravo, bravíssimo!

Ana disse...

Irresistível vontade de chorar.

Laurinha disse...

:)

Paula disse...

Esse jogo do achar a metade pra ser completo, qd no fim só sendo inteiro que a gte consegue seguir ao lado de alguém tb me intriga. teu post me lembrou o velho caio f. doído de amor. '" Não compreendo como o querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira: compreendo sim."

Dalys disse...

marcia, este texto me encantó! me conmovió mucho!
siempre he pensado que el amor es un sentimiento solitario. el amor, lo inventamos o nos nace dentro y se mantiene porque lo proyectamos hacia alguien.

Caco disse...

caramba, que lindo.
de onde vem essa tua sabedoria milenar, hein? também quero.

Rosamaria disse...

pinta patife, sou tua fã incondicional!
bjim.

The Guide Line Freak disse...

O penúltimo parágrafo deixa bem claro que foi uma mulher quem escreveu o texto.

Desejo implicar nenhum sexismo ao dizer isso; somente que o "coração" feminino tem realmente prazo de validade e requer ser constantemente recativado, enquanto um homem, uma vez que ama verdadeiramente nunca perplexa-se pela falta daqueles arquivos.

É engraçado isso, com o fim de um relacionamento onde onde ambas as partes experienciavam este tal amor real a mulher sofrerá por meses, sentir-se-á indesejada, feia, desiteresante, mas por fim, reencontrará o amor próprio e finalmente conseguirá esvaziar as tais pastas.

O homem, na mesma semana do fim do relacionamento, alguns canalhas até bem antes disso, tem a capacidade de buscar novos amores, novas paixões, afogar-se em sexo sem significado e tantas coisas ainda piores. Mas, não importa o que faça, o quanto evite, engula e esconda os próprios sentimentos, o conteúdo daquelas pastas é imutável, mesmo que as pastas sejam transferidas para sistemas de backup, acessados comumente em casos de embriaguês.

Ninguém ama tão lindamente e puramente durante uma relação como uma mulher, mas a máxima de que amor verdadeiro é eterno é definitivamente masculina...

MC disse...

"o que você ama, em suma, é aquilo no qual você se torna enquanto ama." é bem isso :)
adorei o texto!

Renata. disse...

Olha, genial. Achei o texto incrível, a colocação das palavras perfeita, e a clareza do sentimento inexplicável. Uma amiga me indicou esse texto, Thaís. E não pude evitar de comentar. :) Adorei mesmo.

Luciana disse...

belissimo parabéns.!

Paula disse...

Blog LINDO!!!!!!

Qloquis,morena! disse...

Márcia, lindíssimo texto. Daqueles de arrepiar os cabelos do braço. Gostei demais.

Anônimo disse...

"de todas as ilusões humanas, a idéia de andar só ou andar acompanhado é a que mais me fascina. não importa que idade você tenha, ou quanto Nietzsche de verdade tenha lido em sua vida. não importa o quanto você saiba que está sempre sozinho em suas decisões. não importa o quanto você saiba que seu mundo interior é o único mundo que você realmente pode conhecer, e ainda assim com imensas restrições."

Me fez lembrar do meu último texto do meu blog: http://tateandopalavras.wordpress.com/2010/06/06/quer-saber-de-uma-coisa-acho-que-nao/
E me fez pensar em tantas outras coisas que não havia pensado quando escrevi o texto, talvez por estar em uma outra energia no dia que escrevi.

Ao final penso como você: "neste momento, de uma estranha epifania, você finalmente sabe que o único mundo em que você pode navegar é o de suas emoções. você pode se guiar por metas, objetivos e planos. mas são as emoções que te fazem vivo. ao final o amor é esta capacidade interna de se sentir único. você quer ser ser vital, necessário, quer fazer a diferença (para alguém). o que você ama, em suma, é aquilo no qual você se torna enquanto ama."

Parabéns Márcia! Teu texto me tocou de uma maneira que há muito tempo eu não era tocada! Grata.

Melca Medeiros

S-E-L-F disse...

Descobri o blog agora...amei esse texto...vou ler os anteriores...parabéns!!!!!!!

bjss
Juliana M.

Anônimo disse...

Olá, li uma parte do seu texto no blog Don't Touch my Moleskine e tive que conferir o texto completo. Uma bela reflexão sobre o amor, a percepção de nós mesmos e do outro. Eu nunca tinha pensado no amor dessa maneira, adorei suas idéias e o desenvolvimento do texto. Gostei muito do texto, citei um trecho dele no meu blog (com as devidas referências), espero que não tenha problema...

Abraços
L.J

Marcia disse...

puxa... para quem andava numa relação tensa com o blog (abandono? não abandono? será que ainda tenho o que escrever?), foi muito legal receber estes retornos.
muito legal mesmo, obrigada!

:)

cida disse...

Vale uma fã que lê, mas nem sempre comenta?

Gabriel Pardal disse...

Marcia, teu texto é a coisa mais linda de tudo. me fez voar. é toda a vida sincera em palavras.

Tenho um coletivo artístico chamado Nomedacousa. E dentre alguns dos projetos, um chama-se Paralelepípedos [http://paralelepipedos.tumblr.com], que é um mural de textos que encontro pela internet.

Teu texto me fez mais feliz. Portanto tive a audácia de pescá-lo e colá-lo lá no Paralelepípedos. O link direto está aqui: http://migre.me/Qwng

Marcia disse...

vale, Cidoca, ainda mais vindo de ti. :)

obrigada, Gabriel, ficou super lindo.

Sergio H. Jacoby disse...

Bom dia Marcia

Muito bonito e inteligente, lendo teu texto entendi melhor certas coisas estranhas que acontecem com a gente.

Parabéns

Bjs

bel_zynes disse...

assim como diversos outros textos deste blog, eu me fiz derreter sobre a perfeição e simplicidade que você encaixa cada palavra em outra. eu, como uma romántica tolinha, vou roubar este em questão, com os devidos créditos claro, para pôr no meu blog. e por favor! continua essa dança de sílabas por aqui.
sensacional. :)

Karine Serezuella disse...

Olá Márcia, meu nome é Karine Serezuella e gostaria de enviar a você um informativo de abertura do edital RUMOS LITERATURA 2010-2011 do Itaú Cultural, contendo o tema, prazos, prêmios e demais características do edital. Para tanto, por favor, me forneça o seu e-mail. Muito obrigada.
Grata pela atenção.
Karine Serezuella | Comunicação Dirigida | Itaú Cultural | São Paulo.
Tel 55 11 3881-1710 | kacks.sere@gmail.com

Helena disse...

Oi Márcia!

Que lindo teu post!
Como foi bom ler teu texto!

Posso colocar um link deste teu post lá no BioLírios pra compartilhar ele?!

Muito lindo!
Bjus