17 julho 2005

olhares machucam mamutes

[texto recuperado de um antigo blog]

a gente tem a mania de achar que pode tudo. "a gente", aqui, é uma expressão nada científica que comporta graus variados de prepotência. desde o cara que se acha imortal até o cara que acha que, se ele olhar com menos doçura para um mamute, o mamute vai sofrer. vou dar uma dica: eu acho que olhares machucam mamutes. piu.


acho que seríamos uma sociedade menos desajustada se debatêssemos a questão do poder. ou do micropoder, como diz Foucault. não há lugar para falar sobre isso, para analisar os pequenos atos em que exercemos poder. pior: não há lugar para debater o nosso poder imaginado, aquele que a gente pensa que tem, mas que efetivamente, puxa, simplesmente não tem. nesse quadro, penso especialmente no poder sobre os sentimentos, desejos e pensamentos e do outro.


eu vivo um conflito que deve ser de todo mundo. gostaria de ter algum controle sobre o que o outro pensa e quer. não para manipular, pois logo me canso de pessoas sem personalidade, mas para compreender e me mover de modo mais seguro (you know, olhares machucam mamutes). ao mesmo tempo, a liberdade do outro me fascina, pois é a garantia de ser autêntico. e eu só quero o que é espontâneo. oh god, é um paradoxo.


a dor é paradoxal. a dor é um bicho imprevisível. ela vem de repente, às vezes por uma palavra banal, que alguém diz sem imaginar no que está tocando. e em algum tempo a dor se despede, ou se recolhe. hoje é um dia triste, porque seria aniversário do meu irmão. penso que agora trato disso muito melhor do que há seis anos. houve uma época em que eu achava que superar a morte era não sentir nada e que chegaria o dia em que a perda estaria tão bem resolvida, que eu poderia colocar uma tarja na testa: "superei". que bobagem. como se fosse possível encontrar este momento. como se sofrer, de vez em quando, não fosse o preço por estar vivo. pura prepotência: achar que um coração pode continuar batendo se estiver vazio.


tudo acaba no mesmo lugar: o modo como queremos exercer poder e controle sobre aquilo que, bem, não temos controle. como a morte de alguém. como o desejo de alguém, ou o desejo por alguém. como a oscilação de humor. como o desejo de ficar sozinho, ou de fazer uma coisa inesperada. porque a incerteza me joga diante de um fato: meu poder é limitado. aliás, é muito limitado. o outro sofre sem que eu possa fazer nada, o outro gosta de coisas que me estarrecem, o outro é livre. o outro é um mamute. e mamutes nem sempre estão interessados em olhares.


a verdade é que a vida nos impõe de repente, sem qualquer aviso, o que Castoriadis chamou de Abismo. o Caos, o Nada, o Sem-Fundo: a morte. o curso da vida nos impõe outros pequenos abismos para os quais não estamos, nunca, preparados. entre eles, o pisar em falso do desejo.


e mesmo em um domingo assim, cinza, de vento e de chuva, mesmo em um 17 de julho de saudade e de memória, simplesmente não tenho controle sobre meu desejo de estar em um lugar frio e belo, com o coração batendo, oscilando entre estar alegre e estar triste, querer e não querer, tocar e não tocar, saber e não saber.

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