06 janeiro 2006

não há vôo bendito

a vida é frágil. você pensa que está andando sobre pedra, cimento ou terra de milênios, e na verdade o solo é fofo, fino e traiçoeiro. o abismo aparece logo ali. um desfiladeiro com tanto ar, que o ar chega a faltar. e vamos saltando ali, sem tempo de despedidas, sem chance de arrumar coisa alguma, sem negociação. apenas ar.


quando um amigo está doente, negamos esta fragilidade – que não é dele, mas é da vida. como se, ao negá-la, pudéssemos proteger quem amamos. como se pudéssemos afirmar a superioridade do homem sobre o imponderável, o tempo breve, a tempestade injusta. e um dia, no meio da caos, curvamo-nos ao vôo cego. o vôo que todos voamos, um dia antes, um dia depois, um dia sem aviso. vôo cheio de ar.


o que difere o vôo inesperado, que nos deixa perplexos e em carne viva, do vôo anunciado que vai retirando nossa pele, dia após dia, enquanto insistimos? no abismo inesperado, a dor de quem fica é lancinante, e o ar de quem parte permanece suspenso como uma frase não dita. no abismo anunciado, a dor de quem parte é torturante, e o ar de quem fica retém a doçura da chance de afirmar, dizer, contar, aninhar, enlaçar. não há vôo bendito.


partir não é merecimento ou castigo. partir não é uma decisão. como uma ruidosa ironia, partir é da vida. aceitar a vida e seus ciclos, porém, não é humano.

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