12 fevereiro 2006

dizer

de tempos em tempos as gavetas parecem cheias demais, com lembranças demais. em nome de um espaço subjetivo, é preciso rasgar, eliminar, esquecer. é interessante, porém, observar as coisas que resistem ao longo do tempo e por que elas não “podem” ir embora. de um amor de onze anos, restam dois ou três cartões, algumas fotos e um telegrama inusitado que me fez feliz por todo aquele inverno. talvez ainda restem para tornar concreto algo que hoje só vive na memória, de forma fluida, eventual e quase alheia. e talvez um dia também estas últimas coisas possam ir embora.

com as coisas que ficam, em novas caixas coloridas, contam-se pequenas histórias sobre o caráter propriamente humano de ser humano: amor, saudade, amizade, cumplicidade, vontade, tesão, delírio. são pequenas evidências de que fomos reconhecidos como únicos. todo o resto, o que é banal e poderia ser dito ou dado para qualquer um, não ajuda a construir uma história singular e, portanto, não importa.

são fragmentos desta singularidade um cartão postal recebido aos cinco anos. cartões e um bilhete engraçado do irmão que já morreu. valiosas cartas bissextas do irmão que comigo sobreviveu. as dezenas de cartas de uma mãe que quase não existe mais. cartões de amor de quase-amores. cartas escritas por um maravilhoso amigo em bloquinho roubado de garçom. poemas em guardanapo de bar. o roteiro da patagônia. o cartão que acompanhou um precioso pote de balas de goma amarelinhas. uma montagem sobre a lua em prata e preto.

nas limpezas cíclicas de nossos arquivos de memórias, guardamos a representação do valor que o outro nos atribui quando enxerga nossa singularidade. retemos estes signos de sentimentos às vezes apenas provisoriamente verdadeiros e nos construímos, humanamente, sobre eles. somos reféns da linguagem porque somos reconhecidos naquilo que se expressa, e não no que se cala. o silêncio, embora pleno de sentidos, não ocupa nossas gavetas, não atravessa nossa história e não nos alimenta em tempos difíceis.

Nenhum comentário: