29 julho 2006

dizer

há uma semana penso, todos os dias, sobre o poder da confissão e para quem me confesso. é engraçado como uma conversa rápida no meio de uma multidão pode desencadear sensações valiosas que vão se enlaçando, sensações sem nome que vão se concretizando em palavras aqui ou ali.

tudo começou quando comentávamos o famoso depoimento de uma mulher que havia confessado na novela das oito ter gozado enquanto se masturbava. o depoimento, real, inserido no universo ficcional e em linguagem tosca, chocou os hipócritas que se masturbam, mas não dizem que sim e que é bom, e os que não se masturbam e não sabem, ou até sabem, o que estão perdendo. chocou os hipócritas e os frustrados. boa hora para rever Nelson Rodrigues.

depois disso fiquei pensando sobre a importância de dizer. o que dizer significa? dizer não muda nada sobre o que você faz. você pode fazer algo durante anos e não contar a ninguém. é um direito, que eu chamo de direito do inconfessável, direito elementar do ser humano inclusive nas relações de amor. o que ocorre é que vivemos um dilema existencial. somos, em um só corpo, muitos sujeitos, como diz Foucault — e sujeitos à deriva, como diz Deleuze. sendo tantos, é difícil administrar os desejos, afetos e pavores, as possibilidades, potencialidades e imaginações.

ficar à deriva tem sua beleza poética e nos brinda com a liberdade, tão essencial quanto o ar. mas ninguém consegue viver à deriva sem morrer de fome e de sede. e então dizer se torna um modo de ancoragem.

entre tantos modos de dizer, o mais precioso é aquele que se esgueira devagar e tateia com delicadeza. não arromba a porta, não grita ao ouvido indisponível e não se impõe ao olhar dispersivo. o dizer mais valioso é este, que se constrói muito lentamente, quando um mede o outro e avança, passo a passo, dizendo-se mutuamente em uma confiança conquistada de um jeito que, suprema contradição, não pode ser dito em palavras, pois elas ainda não foram inventadas.

a beleza paradoxal de se confessar e se entregar a alguém, em total cumplicidade, nas menores coisas que montam uma personalidade, um caráter e um ser complexo, é que é o único modo de realmente se lançar sozinho no mar. para estar à deriva e viver a plenitude de ser tantos, é preciso encontrar no cais os mesmos olhos profundos que dizem sempre, incondicionalmente, “sim, eu sei e estou aqui”.

4 comentários:

Adriana Amaral disse...

marcia, q bela análise foucaultiana de um fragmento de programa televisivo. adoro o que tu escreves.. bjos

Telejornalismo Fabico disse...

*

mestre mafesolli diz que somos membros de várias tribos. e na verdade acho que é isso mesmo: somos coesos internamente, mesmo com tantas rupturas e diferenças. é só no outro e para o outro que essas coisas se materializam, dependendo do espaço que ocupamos.

fico imaginando o quão chatos seria se fossemos totalmente planos, sem mistérios, sem segredos.
seria comer mondongo todo dia, do café da manhã ao jantar.

blérg!



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Ana disse...

E é tão bom ter com quem falar...
Poder dizer nossas coisas sem ser julgado...

Anônimo disse...

Se existe o inconfessável, é porque o “feito” nem sempre é confessável. O dizer, ou não, não altera o ato realizado no passado, mas pode alterar suas conseqüências. Se praticamos o ilícito silenciosamente, sem testemunhas, temos um resultado. Se depois de algum tempo o confessássemos – isto num relacionamento – o peso do julgamento do outro cairia de tal forma sobre nós que dificilmente deixaria de trazer conseqüências desastrosas. É a razão pela qual muitas vezes deixamos de contar sobre algo que fizemos e sabemos, com a mais absoluta convicção, que não traria conseqüências sobre aquilo que sentimos ou sobre quem sentimos. Mas, lá no íntimo, sabemos que o feito, uma vez dito, traria resultados que, no mínimo, nos levaria a ter que “conversar sobre a relação” – o que o transforma em inconfessável.